Georges Bataille, em “O Erotismo” (um dos 5 melhores livros q li na vida!), dizia q a cada momento da cultura a sociedade elege uma “figura dilacerante”, uma aberração, q representaria o ápice da excrescência humana, o q nos forçaria a repelir inevitavelmente, uma repulsa urgente, exigência pulsional (Freud) necessária à nossa preservação subjetiva. “Erotismo”, para Bataille, numa de suas acepções, significa “a relação de atração ou repulsa inevitável com algum objeto”. A sociedade, portanto, sempre criará os “monstros da vez”, os párias unânimes, capazes de enojar multidões, instigando ódio, distância ou, no limite, linchamento.
No mito de Satã (muito bem comentado num texto de Arnaldo Chuster), bem pr’além de qualquer religiosidade, Lúcifer (anjo da luz, dileto de Deus) seria expulso do paraíso por excesso de lucidez, “caindo do céu”, perdendo a “graça divina”, caindo em “desgraça”, fadado à escuridão. Lúcifer “cai em si”. Proponho, a partir daí, uma articulação: nossa cultura acostumou-se ao ato falho de dizer q “sofreu uma desilusão”. Do q o humano sofre? De “desilusão” ou de ilusão??? Nosso desamparo fundamental (Freud) convida a buscarmos sempre um cobertor amigo, um substituto por vezes caricato do útero materno perdido. Somos tementes a Deus, a Freud, aos pais, a uma posição política, ou a uma relação amorosa. Sofremos, portanto, de uma grande e crônica ilusão.
No entanto, por conta de nossa condição inevitável de ambivalência emocional, vacilamos. O paradoxo nos salva da morte no útero, daí duvidamos. Alguma lucidez recalcada provoca o retorno fundamental do Lúcifer de nossas transgressões. Sentimos uma atração incômoda pelo proibido, pelo abjeto, pelo sujo. Apedrejamos e perdoamos, não pela suposta soberba de um abnegado perdão, vendido por algumas religiões; fazemos este duplo movimento, contradição pura, pq internamente necessitamos, como uma “nova ação psíquica” (Freud), uma bálsamo oxigenante diante de uma asfixia de um regime do impossível do grande Outro (Lacan). A fúria de nossos desejos e ódios se expressa no nojo seguido de complacência, no horror seguido de tesão. Podem encontrar isto em Freud e Bataille, ou em Buñuel e Pasolini, Deus e Lúcifer.
Nos dias atuais, essa figura abjeta, capaz de enojar a todos, seria o pedófilo. Unanimidade, este ser consegue ser massacrado e ultrajado até nos presídios. É o estupro consentido, a justiça reconquistada, o ódio acalmado. Como no brilhante filme “Sexo por Compaixão”, apedrejamos a “Geni” q nos causa um tesão estranho (Freud), um incômodo q precisamos rechaçar, recalcar, pois seu efeito nos é dilacerante (Bataille), insuportável. Maria Rita Kehl propõe q o sujeito q se diz “de caráter ilibado” não passa de um neurótico ressentido, negando a cisão fundante do humano, fadado ao eterno conflito psíquico de q Freud tanto nos falou. Portanto, a despeito do nojo/ódio, precisamos buscar alguma conciliação, ainda q parcial, com o horror da pedofilia.
Noutros momentos históricos, já odiamos os negros, os judeus ou os homossexuais. Obviamente, aqui não cabe compará-los, ou equipará-los, mas apenas questionar este nojo maniqueísta q nos faz ter tesão numa roupa de colegial do sex shop, logo após apedrejarmos a pedofilia. Não há aqui, em absoluto, nenhuma proposição de legalização do ato pedófilo. Apenas uma aproximação de mais essa aberração, demasiadamente humana.
No filme “Una”, o excelente diretor australiano Benedict Andrews nos apresenta uma “pedofilia consentida”, o q por si só já desorganiza nossas estruturas prévias. Com isto vai muito mais além do bom e superestimado “A Caça”, já q este apenas nos apresenta o desconforto da facilidade com q podemos acatar e criar um ser abjeto, a partir de sutilezas imaginárias. Como dizia Freud, se tudo q minhas histéricas dizem for verdade, metade dos pais da Europa é pedófila…
A discussão em “Una” é revolucionária, muito à frente do nosso tempo. Antimaniqueísta ao extremo, aqui não há vítimas ou vilões, mocinhos ou bandidos. Também não há complacência, ou negação de danos emocionais à menina. O filme é para além. O diretor insiste em pesquisar as emoções dos personagens, à parte do contexto cultural, sem no entanto negá-lo, posto q o pedófilo é preso.
Uma das questões fundamentais abordadas é a interrupção do curso da relação amorosa entre a menina e o adulto. A menina, agora mulher, quer acertar as contas com sua própria história, abalroada pelas leis da família e do Estado. Vai ao encontro do homem q amou, ou ama, reivindicando a legitimidade de seu sentir, já q agora a sociedade não constitui impedimentos, posto q ambos são, em idade, igualmente adultos.
A história de amor desses dois humanos precisava de um desenrolar, de um desfecho, precisava da beleza de uma desilusão, sem nenhuma mediação social. A menina precisava “resolver” seu tesão e sua raiva, seu amor e sua ilusão. Para tal, prepara-se, maquiagem em riste, exigindo reconhecimento de q agora é uma mulher.
“Una” é a obra-prima à frente do nosso tempo, sobre a ultimização (Fernando Pessoa) de um amor, para além dos Montecchios e Capuletos (Shakespeare) de nossa sociedade atual, q somos nós mesmos. Suportá-lo nos reinventa e desmascara, nos disponibiliza a outras aberrações, novos ódios e repugnâncias. Q venham os próximos, quem sabe os terroristas…
Olá Bruno,
Texto intenso, reflexivo e bastante provocativo. Preciso rever Una.
Sua análise me fez lembrar muito um texto de Sartre sobre o autor Jean Genet do livro “Saint Genet Ator e Mártir”. – “No fundo de nós próprios, todos ocultamos uma ruptura escandalosa que, se revelada, nos transformaria subitamente em objeto de reprovação”.
Somos nós os “monstros da vez”? Com essa provocação você me remeteu outra vez ao texto acima citado: – “Oscilamos, todos nós, entre a tentação de nos preferirmos à tudo(porque a nossa consciência é para nós o centro do mundo) e a de preferirmos tudo à nossa consciência”.
Como você diz: “Sofremos, portanto de uma grande e crônica ilusão”, mas como escapar desse mantra ancestral que conforta na hora da dor, quem nunca escutou: – Para curar uma desilusão só outra ilusão? O desamparo é muitas vezes devastador.
O diretor nos apresenta uma “pedofilia consentida”, sim é isso, sem vítimas, heróis ou vilões. O que me faz pensar nas meninas/mulheres diante dessa tão bem montada cerca humana (não muro), onde muitas sem compreender ainda, sabem onde explode o desejo. Natural animais que somos, o mesmo cio que repulsa provoca tesão, como você diz na sua linda análise: -“a fúria de nossos desejos e ódio se expressa no nojo”.
”O filme é para além”. -Além de que? além de quem? – nesse momento preciso pausar e refletir. Tem muita coisa aqui nesse além. Muito mais …
Tempos idos onde nossas ancestrais meninas inauguravam sua menarca com um coito consentido ou não pelos rituais das leis patriarcais vigentes. Em Una você escreve: -“a maquiagem em riste a menina mulher agora quer acertar as contas com sua própria história, abalroada pelas leis da família e do Estado”. Estado organizado por eles, elaborado não para a ficção nem para as formas consentidas. Será que essa acerta as contas? Preciso rever Una!
Na sua análise você faz muitas citações “deles”: Deus, Chuster, Buñuel, Pessoa, Freud, Lacan, Bataille, Pasolini… (não que não devam ou não deixem de serem citadas), para apenas uma referencia “dela” Maria Rita Kehl. Isso me inclui, a minha citação de Sartre é muito contraditória. Essa questão me inquieta, já que o filme esbarra numa questão tão secular da essência feminina.
Na fita não há conflitos, o consumado gera prazer duplo, OK. Mas o aqui fora, o real ainda é carregado de abordagens masculinas, o que propõe muitas reflexões.
Então no parágrafo final você transborda em provocações , quer puxar briga, quer eleger o nosso crime e legitimar nossas nulidades “Que venha os próximos, quem sabe os terroristas…” Aí então fica minha provocação e convite. Precisamos rever – A Terceira Geração. do R.W.Fassbinder (1979), para saber de qual terrorista estamos preparando nosso ódio e vingança?
Parabéns pela brilhante crítica e análise.
Vivi
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