Psicanálise, “A Grande Aposta”

O q é análise? É possível responder a esta pergunta?

A primeira resposta seria não, pois se análise é um ato singular, pessoal e intransferível, não há generalização possível q organize suas categorias de funcionamento universalmente.

Uma segunda resposta possível, tão verdadeira quanto a primeira, precisaria reunir especificidades do processo psicanalítico q estivessem supostamente presentes na análise de qualquer um. Idealmente, é claro, doutra forma nenhuma teoria seria possível.

Poderíamos, talvez, começar quebrando um lugar-comum sobre psicanálise, q nos sirva como exemplo suficiente por hora. “Análise é algo a longo prazo. Coisa pra muitos anos…” Na realidade, análise não possui um pressuposto ou tendência cronológica. Tudo depende dos projetos – conscientes e inconscientes – q emanarem do encontro analista-analisando, tanto em termos de quantidade quanto em profundidade. O efeito dessa coisa chamada encontro (ou “Terceiro”, como nomeou o psicanalista Thomas Ogden, um de meus preferidos) desdobra-se também no tempo, q tem Chronos como uma de suas acepções. Isto é, a partir da singularidade do par analista-analisando, haverá um desdobramento da análise numa certa temporalidade, através de alguns específicos caminhos e não outros, percorrendo determinadas emoções e atingindo transformações particulares. O “prazo” de duração da análise, portanto, está no meio desta enorme malha de possibilidades.

Partindo para uma outra característica bastante própria a uma análise, encontramos a ideia de aposta. Optarei aqui por tomar a ideia de aposta num sentido bem forte da palavra. Nenhum dos significados q encontrei nos dicionários se aproxima o suficiente do q aqui quero propor. Penso aposta, inicialmente, como Ferenczi (psicanalista húngaro, provavelmente o mais importante de todos q conheci), quando este diz q “sábio é o ser que adivinha”. Adivinhação, aqui, nada tem a ver com previsão de futuro. A ideia de Ferenczi é q qualquer pessoa tem condições de acompanhar algum acontecimento tão íntima e atentamente q poderia então ad-vinhar algo do q está por vir. Quando algo se dá, traz consigo inúmeros “penduricalhos” q configuram os múltiplos desdobramentos em potencial. Portanto, quando algo vem, outras coisas ad-vêm juntamente. O psicanalista, como qualquer outra pessoa, pode propor certos usos possíveis destas tendências, desde q, como tudo, com grandes cuidados éticos.

Conversando com um analisando economista, há uns meses atrás, falávamos da palavra cenário, cotidianamente utilizada em seu trabalho. Traçávamos vários cenários possíveis, e daí organizávamos e criávamos caminhos de trabalho analítico juntos. Este seria apenas um exemplo de usos da aposta, no caso a partir de cenários possíveis (assim como as “condições de possibilidade” do filósofo Kant).

Gostaria, finalmente, de propor uma articulação com “A Grande Aposta”, indicado ao Oscar de Melhor Filme deste ano. Surpreendentemente, apesar de bastante hollywoodiano, ele nos traz uma ótima discussão. O personagem de Christian Bale (um dos melhores atores da atualidade) antecipa uma crise inédita no mercado imobiliário. Ao invés de focar no falo deste personagem e dos poucos q compram sua ideia – clássico recurso no cinema comercial -, o diretor opta por denunciar a mediocridade não apenas dos americanos, mas de praticamente todos os “analistas financeiros” do mundo. Ainda q o tema “ações/imóveis” seja sua matéria de estudo e trabalho, e seu ganha-pão, todos pensam em manada (como retratavam insistentemente Buñuel, Pasolini e outros tantos há algumas décadas).

A ênfase, portanto, está na extrema impossibilidade de fazerem a simples pergunta: “Será?”. Os raros q a fazem, claro, enriquecem financeiramente (já eram mais ricos noutros sentidos). Além disso, o personagem de Bale (um tantinho estereotipado como louco/excêntrico) se questiona: “Quem está errado nunca sabe, e nem o porquê de estar.” Ele sabia q pelos argumentos de massa dos q acreditam no “em time que está ganhando não se mexe”, ele não estava errado. Porém, poderia haver alguma variável desconhecida (como alguma fraude no sistema, não cogitada por ele).

Pior, se ele estivesse errado seria o triunfo da mediocridade, e nunca um fator específico não mensurado (como no final do filme “A Promessa”, com Jack Nicholson). Quantas vezes conseguimos apostar no “não consagrado”? O q há de tão sagrado nas apostas viciadas? Poderíamos conjeturar q um rapaz de pernas tortas como Garrincha marcaria seu nome exatamente como jogador de futebol, por exemplo? Quantos filmes não consagrados por Hollywood nos arriscamos a assistir? Se alguém procura uma análise estando muito mal, poderíamos vislumbrar algo mais do q apenas a melhora daquele mal-estar?

Tendo em vista todas essas questões, proponho pensarmos na especificidade do trabalho de análise como uma Grande Aposta. Tomarei “aposta” no sentido de olhar além do sagrado, do totem q nos entorpece os sentidos (ler o texto “Totem e Tabu” de Freud). Este posicionamento já no início de uma análise antecipa algum importante esvaziamento do Grande Outro* q impede a liberdade do sujeito.

A partir do potencial apresentado inconscientemente pelo próprio analisando, o analista já começa a trabalhar dentro desta Grande Aposta. Enquanto isso, o analisando segue inebriado pela fragrância do vislumbre de q algo ali parece fazer sentido. Nada mais, apenas isso. Claro q não estou me atendo aos analisandos q creem cegamente em qualquer coisa vinda deste analista Suposto Saber.

Portanto, analista e analisando entram numa trilha “ao som” do poeta Maiakovski: “Eu caminho no escuro, pois cogito a luz”, num mergulho de Lúcifer, abandonando a luz divina supostamente pré-assegurada, doa o q doer, como diria Clarice Lispector ou a personagem do filme “Livre”. Sem o glamour de qualquer coisa tipo “Deixa a vida me levar”, sem a suposta garantia do saber prévio do analista, sem Freud nem Lacan como seguro-fiança, só resta a vertigem. Ética e dolorida. E sem final feliz, pois ganhando umas e perdendo outras, “no final a banca sempre leva”, como diz o diabo em “Desconstruindo Harry”, a obra-prima máxima de Woody Allen.

 

 

* Grande Outro: termo criado por Jacques Lacan para nomear o cenário singular q cada um de nós carrega como fantasma viciante. O q nos faz repetir, repetir, até, no melhor dos casos, ousar alguma transformação.

 

O Novo Cinema Soviético (“Tangerines” e “A Ilha do Milharal”)

O Oscar premia todo tipo de filme: de obras-primas como “O Poderoso Chefão” e “Onde os Fracos Não Têm Vez”, a equívocos como “Quem Quer Ser um Milionário?” e “Argo”. Dos eternos Al Pacino e Jack Nicholson, aos fracos Jeff Bridges e Cuba Gooding Jr. Das brilhantes Julianne Moore e Judi Dench, às sem adjetivos Sandra Bullock e Kim Basinger. Isso para citar apenas os anos mais recentes. Mas considero q, sem sombra de dúvidas, o legado mais respeitável e o único praticamente infalível desta premiação tendenciosa se refere aos indicados a filme estrangeiro.

Irônico q o maior espetáculo hollywoodiano erre pouco apenas no cinema não americano… Quando digo q é um braço bastante preciso de premiação, me refiro apenas ao fato de q praticamente todos os indicados são excelentes filmes, pérolas q renderam prazeres inesquecíveis. Claro q há uma lista infindável de obras-primas sem menção neste Oscar, como “A Professora de Piano” (meu filme preferido) e tantos outros (ver mais no post “Grande Lista de Filmes”, aqui neste blog). Igualmente descontemplados são atores como Isabelle Huppert (a melhor atriz do mundo, incomparável), Mathieu Amalric e Ricardo Darín.

Entre os 9 pré-indicados pra 2015 (além dos 5 finalistas, os outros também têm grande valor), além do brilhante polonês “Ida” (merecidamente vencedor), do unânime argentino “Relatos Selvagens” e do ótimo sueco “Força Maior”, houve outras 2 belas surpresas q descobri através desta fonte: “Tangerines” (representante da Estônia) e “A Ilha do Milharal” (da Geórgia). Dois países da extinta União Soviética, ainda sem tradição no cenário mundial, dois excelentes filmes de arte. Ambos trazem a guerra da Abecásia (na Geórgia) como pano de fundo.

No primeiro, estoniano, pessoas abandonam suas casas diante de um panorama de guerra. Um senhor de 60 anos (o protagonista) decide ficar em sua terra, não acompanhando sua família na emigração. Certo dia, dois soldados entram em sua casa, em tom sutilmente intimidador. Bem tratados, saem agradecidos, levando pão e água. No dia seguinte, tiroteio em frente à propriedade. Os 2 lados em guerra saem baleados, quase todos mortos. O senhor carrega um soldado baleado (um dos q ele havia recepcionado na véspera), abrigando-o num de seus quartos. Quando ia enterrando os outros, descobre mais um ainda vivo e também o acolhe. A questão é q este é do exército q lutava contra o outro…

Como o primeiro combatente se recupera mais rápido dos ferimentos, avisa ao “velho” (modo como ele se dirige ao dono da casa) q matará o outro soldado, responsável pela morte de seu companheiro no combate. O senhor escuta, calado. No dia seguinte, diante da mesma ameaça, replica: “Dentro da minha casa não permitirei.” O soldado, surpreso, acata: “Assim q ele botar a cara pra fora da casa, eu o mato.” O senhor permanece em silêncio.

A cada dia q passa, o senhor vai transmitindo valores, apenas através do seu modo de cuidar dos 2 homens. As raras palavras q fala são para conter os instantes tensos entre os antagonistas, à beira das vias de fato. Após uns dias, o senhor faz uma provocação ao primeiro combatente: “Se o outro botar o pau pra fora da casa pra mijar, vc atira no pau?” O soldado nada diz, quase como se quisesse sorrir. Mais tarde, fazem um churrasco no quintal, numa espécie de trégua tácita. Até chegar o dia em q precisariam lutar do mesmo lado. (Aí deixo para vcs assistirem, já adiantei demais…)

A beleza do diretor é orquestrar vários personagens obsessivos num pequeno cenário também obsessivo (onde cada detalhe pode de fato acabar em tragédia), em um contexto maior de tensão bélica no país, e ainda assim apresentar ao espectador a sensibilidade afetiva emanada pelo personagem do senhor e, gradativamente, percebida e recebida pelos dois soldados. Tudo isso numa linguagem extremamente contida, em todos os sentidos. Belíssimo. A eloquência “bege” do cinema nórdico (ver mais no post “’Cinema bege’, a última revolução no cinema”, aqui neste blog) conversa de perto com este “cinema soviético”.

O segundo filme, “A Ilha do Milharal”, apresenta um belo e duro cenário pós-guerra onde um velho camponês descobre uma “nova ilha” – na estação de baixa do volume de água de um rio, “nascem” micro ilhas –, com boas condições de plantio. Constrói sozinho a estrutura de uma casa de madeira, depois traz sua neta para juntos finalizarem sua nova morada, e uma plantação de milho no espaço restante da “ilha”.

A partir daí, tensões do pós-guerra e do amadurecimento da púbere menina são trabalhadas com extrema delicadeza e precisão. É bastante possível traçar um paralelo com “Primavera, Verão, Outono, Inverno e… Primavera”, obra-prima de Kim Ki-duk, onde um velho e um garoto atravessam as 4 estações como metáfora das agruras do crescimento, tudo num belíssimo cenário duma ilha entre montanhas. Mais uma vez, todos esses filmes apresentam suas questões através de personagens extremamente obsessivos, sempre com gestual minimalista.

Dois belíssimos filmes expondo intensidades emocionais em relações obsessivamente delicadas, com economia e eloquência. Quem sabe até um novo polo cinematográfico.

Declínio e Beleza do Amor em “Love” e “Lua de Fel”

No polêmico filme “Love”, exibido em Cannes-2015, o diretor Gaspar Noé (do excelente e intenso “Irreversível”) apresenta cenas de sexo explícito, longas e variadas. Ainda fico extremamente impressionado como o sexo segue sendo um assunto bombástico, inevitavelmente. Q seja mobilizante, ok. Mas sempre polêmico e causando alvoroço já acho over – tanto pros q elogiam o filme-sensação da vez, quanto pros q criticam.

Desde os tempos da obra-prima “Último Tango em Paris” (1972), passando pelo fraco e superestimado “Império dos Sentidos” (1976), pelo muito bom “Calígula” (1979), até os excelentes “Ninfomaníaca” e “Azul é a Cor Mais Quente” (ambos de 2013), e agora o ótimo “Love” (2015), o sexo ainda segue chocando até a plateias não moralistas. Pq o sexo não pode ser apenas um elemento especial ou interessante, mas não o centro cataclísmico do nosso impacto num filme? Se o sexo roubar a cena AUTOMATICAMENTE, nossa subjetividade, por vários motivos, terá se tornado automática. No mínimo, um desperdício de potencial. A sexualidade pode ser poética, inspiradora, eloquente, lasciva, criativa, suave, pulsante, etc. Mas se for “automática”, neste sentido aqui proposto, aí soa triste e pobre.

Retomando “Love” como um todo, sem diminuir nem aumentar a importância da sexualidade, mas apenas devolvendo seu lugar de um dos elementos relevantes neste filme, me parece q o tema forte é a ascensão e o declínio do amor, em tons agudos. O diretor estuda detalhadamente a importância de sexo, amor e fidelidade para cada personagem. E o faz de forma artística, talvez com alguns micro excessos, nada grave.

Somos levados a acompanhar as diferenças de gênero durante os dilemas dos protagonistas na sustentabilidade do amor. As promessas sinceras, de validade curta. O brilho no olhar, agonisticamente em queda livre e lenta. O desespero dos amantes, q fazem de TUDO para tentar segurar o amor, em seu irremediável declínio. Se é amor ou paixão o q fenece, escolho não entrar nesta seara. Acho q é amor sim, neste filme, a título de nota apenas.

A referência mais direta de “Love” é o clássico “Lua de Fel” (Polanski, 1992). As desesperadas artimanhas sexuais de um casal desempregado, extasiado ante à luxúria e ao amor, desempenham igual papel nas duas obras. A tragédia final é o destino óbvio de uma intensidade purista q exige sustentação sem concessões, numa rota de sempre mais além, custe o q custar. E custa. Não é q os protagonistas não tentem uma “dobra sobre si” (como propõe o filósofo Deleuze), porém não sabem como procurar, nem onde. Certamente não seria indo às compras num “sex shop de gente”, tentando ménage, orgia, ou um travesti. O resultado: ofensas, ódio, e as lágrimas da melancolia, “à sombra do amor perdido” (parafraseando Freud, em “Luto e Melancolia”).

A violência, mais leve em “Love” do q em “Lua de Fel” ou em “Irreversível” (também sobre um amor não sustentado, ainda q numa tragédia mais pontual), parece até uma “dor q não dói”, por ser uma violência-substituto de uma dor muito mais insuportável. Lembro dos anos em q trabalhei em clínica psiquiátrica, onde muitas vezes ouvi pessoas dizendo q cortavam os pulsos “para atenuar a dor da alma”, ou a “dor de existir”. Daí, portanto, a morte – concreta ou não – parece ser talvez um descanso impotente, uma crônica de uma morte anunciada, citando Gabriel Garcia Márquez.

A discussão última fica na questão apresentada ao fim de “Lua de Fel”, quando Peter Coyote (paralítico) diz à sua esposa: “Nós fomos longe demais, baby.”, logo antes de matá-la e a si. É essa a questão? Ou é a outra frase, no mesmo filme: “Os casais deviam se separar no auge da paixão, e não esperar até o inevitável declínio.”?

Em “Réquiem para um Sonho” (2000) e em “Os Sonhadores” (2003), a discussão aponta para a prévia ingenuidade do sonho e dos sonhadores. Tragédia sempre anunciada. Em “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (2004), o roteiro aponta para o mito de Sísifo (discutido no livro de Albert Camus), onde estaríamos fadados a conduzir nossas paixões ladeira acima, mesmo sabedores da tragédia de q a pedra sempre cairá ladeira abaixo no fim.

Excesso, ingenuidade, condição da humanidade… Para onde aponta o declínio da beleza amorosa?

……

Freud, Dostoiévski, Kafka/Welles e Masud Khan nos filmes “O Duplo” e “O Processo”

Tive uma grata surpresa ao assistir a “O Duplo”, baseado no romance homônimo de Dostoiévski. Adaptação muito interessante, fotografia de ótimo nível em tons cinza escuro. O protagonista começa perdendo seu lugar num metrô vazio para um estranho, q rapidamente vamos percebendo ser seu alter ego, versão proativa e super autoconfiante (oposição imaginária à sua realidade de inércia e apagamento).

Inicialmente, este “outro” personagem soa como um parceiro alvissareiro, estimulando seu crescimento na empresa onde trabalha. O ambiente profissional é surrealisticamente burocrático, lembrando “O Processo” (obra-prima de Kafka, adaptado ao cinema por Orson Welles) e “O Castelo” (também do escritor tcheco), cheio de “pequenos poderes” em forma de labirinto intransponível. Ao alter ego, no entanto, tudo é facilitado, as portas sempre se abrem, as pessoas sorriem e mostram reconhecimento por seus atos.

Portanto, este “outro” inicialmente faz a função de “ideal do eu” (conceito freudiano referente às nossas prospecções e expectativas subjetivas, para dizer de forma sucinta), apresentando um caminho de norteamento evolutivo. Aos poucos, esta alteridade toma a forma de supereu tirânico (Freud), massacrando o protagonista, empurrando-o a uma espécie de “zero absoluto”, metaforicamente um suicídio. Novamente, a analogia com o “Sr. K” de “O Processo” é direta. Melanie Klein, q deixou seu nome marcado na história da Psicanálise, falava da “posição esquizo-paranoide”, quando o sujeito teme um aniquilamento proveniente de paradeiro desconhecido, questão bastante patente na angústia do protagonista de “O Duplo”.

Enquanto Freud dizia q o supereu / ideal do eu possui 2 facetas – a positiva, como referência evolutiva, e a negativa, de exigência tirânica -, Daniel Kupermann prefere pensar o supereu apenas como função negativa e opressora, separando-o do ideal do eu, tendo este a positiva função de referencial expansivo. Considero as duas interpretações bastante próximas, porém a de Kupermann me parece mais interessante psicanaliticamente. No filme, o protagonista fica sem espaço diante de seu alter ego desde o início, portanto este esmagamento poderia ser considerado uma projeção de um supereu implacável, mórbido.

A estética lúgubre de “O Duplo” e de “O Processo”, assim como de boa parte dos filmes de Ingmar Bergman, explicita o peso constante e massacrante de uma Lei interna impossível de ser seguida, auditada e punida eternamente através de um sentimento de culpa muitas vezes só dissolvido pelo humor ou pela morte. Ou por um processo de elaboração em sessões de análise ou através da arte.

Por fim, o psicanalista Masud Khan utiliza o conceito de “duplo” (já apresentado por Freud na obra-prima “O Estranho”), como questão clínica observada em muitos de seus analisandos. Ele percebia q era comum q as pessoas chegassem à análise demandando q suas facetas desagradáveis fossem exorcizadas, a fim de q a parte “mais interessante” ou “bem sucedida” prevalecesse com exclusividade. Na contramão desta expectativa, Masud trabalha a coexistência de todas as facetas subjetivas, num paradoxo includente q venha a permitir uma espécie de diálogo entre essas partes, articulando as diferenças sem q uma suprima a outra.

A coexistência em paradoxo de nossas diferentes facetas subjetivas, portanto, seria a única condição demasiadamente humana possível, ainda q dificilmente caiba numa lógica de vitrine “Fakebook” cor de rosa..

Travessias do desamparo (“Livre”, “Na Natureza Selvagem” e “Elena”)

Sem sombra de dúvida, “Elena” e “Na Natureza Selvagem” têm mais qualidade q “Livre”. Porém, este último possui vários méritos surpreendentes. Já valeria por suscitar a articulação c/ essas outras obras tão marcantes no cinema.
“Elena”, provavelmente o q vai mais fundo na questão da dor e da busca por voltar a respirar, é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Petra (a diretora) filma sua história c/ sua irmã Elena, q cometeu suicídio quando Petra ainda era menina. A beleza do amor entre as irmãs é expressa à perfeição, sem o menor traço de pieguice ou de “linguagem interna” não compreensível ao espectador. Petra transmite o atravessamento de sua dor pela perda da irmã, buscando alguma possível e humana sublimação (termo q Freud retirou c/ ótima simplicidade da química: “passagem do estado sólido para o gasoso”). A diretora vai à própria infância para arrancar visceralmente seus pedaços mortos. Sua autenticidade corajosamente ímpar impacta e derruba qualquer um q tenha disponibilidade ao sentir (assim como o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi cunhou seu “sentir com”, para falar de sua afetação com seus analisandos). Petra arrisca sua sanidade em busca de algo mais q sobreviver – lembrando o poético trecho “consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade”, da belíssima música de Renato Russo (“Sereníssima”). Atravessa seu fantasma através da arte, assim como tenta o pintor Gorky, personagem do filme “Ararat”, obra-prima de Atom Egoyan. Através da Psicanálise, através da Arte, o mergulho pelo trágico permite uma possibilidade árida, sem garantia alguma.
Em “Na Natureza Selvagem”, Sean Penn expressa magistralmente a busca de um jovem por se livrar da opressão superegoica introjetada pelos valores impostos por seus pais. Conquista o direito a estudar em Harvard (sonho/exigência de seus pais), queima carro e dinheiro – prêmios q eles lhe dão -, e parte para ficar algum tempo no Alasca, totalmente sozinho. Conhece algumas pessoas extremamente interessantes e sensíveis ao longo do percurso, porém nunca se disponibiliza a mais q um “flerte”, pois está fechado em sua reta intenção. O q ele não percebe é q sempre levamos o trágico na mochila, pois não há apagamento possível das memórias afetivas; as milhas de distância podem no máximo ser um paliativo interessante enquanto não é possível enfrentar o fantasma, cortejar a insanidade q Petra desperta de e em Elena, no outro filme. A onipotência/arrogância dos pais do garoto o acompanha ao Alasca, escondida, até ressurgir em sua morte, quando ele acha q pode sobreviver no gélido deserto com apenas um livrinho de plantas comestíveis. Ousado como gente grande, ingênuo como um menininho q foge p/ a casa de árvore no quintal. O “retorno do recalcado”, como nos diz Freud, é implacável, inexorável.
Enfim, voltando ao filme “Livre”, a personagem de Reese Witherspoon busca uma andança de 3 meses numa severa trilha, deserto e neve incluídos. Durante seu percurso, visita sua história c/ a mãe, recentemente morta de um câncer súbito. “Corteja” seus tempos de drogadição e promiscuidade (obviamente sem moralismos aqui), e seus episódios de raiva da mãe, por esta ter escolhido um marido alcoólatra e violento. Machuca seu corpo fisicamente na trilha, como tantas vezes vi pessoas cortando seus pulsos para tentar expurgar suas dores emocionais. Das drogas, passando pela promiscuidade, até o corpo ferido na trilha, a protagonista percorre a “travessia de seu fantasma” (termo bem colocado por Lacan), tentando rasgar sem arrebentar. Afinal, pergunta-se: “Nunca me redimirei?”, “Ou já me redimi?”, “Errei ao me machucar?”, “Ou precisei disto para chegar noutro lugar?”
Portanto, “Livre” merece todo o crédito pelo uso apenas comedido dos clichês hollywoodianos, por alguns questionamentos profundos e por evocar outros filmes de tamanha sensibilidade.

“Amores Inversos” e “Tudo Pode Dar Certo” – Revoluções subjetivas

“Amores Inversos”, excelente filme, surpreendente desde o princípio. Uma governanta/babá (Kristen Wiig, incrível no papel) – extremamente tímida, obsessiva, retraída e apagada -, é contratada para cuidar por uma nova família. Os traços perversos da adolescente da casa e uma amiga desta (ainda pior), constroem um romance imaginário da governanta com o pai da menina de q ela cuida. A partir daí, a feminilidade da babá sai do armário, do apagamento e ousa apostar numa vida erotizada pela 1a vez. Enquanto isso, o pai da menina (vivido por Guy Pearce, ótimo) vive afundado nas drogas, numa culpabilização perpétua por ter causado o acidente q matou sua mulher.

O improvável encontro entre ele e a babá desperta-os inusitadamente. As diferenças de estilo e de fragilidades entre os dois instigam novas possibilidades emocionais em cada um. O filme ressalta a repercussão deste contraste radical de subjetividades, disruptiva para todos.

O despertar causado pela alteridade é também o tema de “Tudo Pode Dar Certo” (2009), maravilhoso filme de Woody Allen. À moda antiga, relembrando os tempos anteriores a seu contrato com a Miramax (quando passou a incluir um quê hollywoodiano em suas obras, desde “Match Point”, em 2005), Allen apresenta um tragicômico encontro de um velho turrão (lembrando o lendário Walter Matthau) com uma jovem perdida na vida. Daqui também irrompem transformações subjetivas impensáveis até então. “Whatever works”, como diz o título original (pra variar mal traduzido), caminhos sui generis que levam as pessoas a novas perspectivas. Assim pensava Sándor Ferenczi (o psicanalista q mais admiro), ao criar estratégias bastante heterodoxas em situações clínicas muito complexas.

Quando pensamos “Tal pessoa nunca faria análise”, ou “Isso não tem nada a ver com aquela pessoa”, mostramos apenas nosso vício de enxergar somente o que já aparece em alguém. O potencial humano sempre está para além de qualquer vislumbre, inclusive de um psicanalista, que, na melhor das hipóteses, se surpreende diariamente com seus analisandos, que transcendem até suas apostas mais positivas.

Woody Allen nunca teme esbarrar em possíveis pieguices para insistir em sua aposta na revolução humana. “Amores Inversos” também não. Ambos imperdíveis.