“”Coringa”, a Sátira do Riso Livre

Para além do personagem antagonista do Batman, Coringa é José da Silva, ou seja, qualquer um.
Alguém tão comum, que chega a não existir.
O sistema o apagou, e ninguém se lembra dele.
Viveu “preso do lado de fora”, como diria Solal Rabinovitch (psicanalista lacaniana), foracluído do sistema, algo que se tornou seu único “crachá” (“Perdão, eu rio fora de hora.”), seu sobrenome-do-pai, uma suplência de inclusão na ordem social.

De tanta opressão subjetiva, de tanto ser espremido, nasce o Coringa.
A figura do Anti-Herói seria uma “acne do sistema”, um efeito da tentativa de eliminação do mundano. De tanto dessubjetivar José, só restaria Ninguém.

A construção de um Coringa a partir de um Zé Ninguém é um dos maiores brilhantismos do roteiro deste filme.

À “desentificação” reage a “entificação”, isto é, a pulsão de morte – “pulsão por excelência”, segundo Lacan -, exige trabalho subjetivo.
À esta exigência, nasce o Coringa enquanto resistência (no sentido de força, como propõe o filósofo Foucault).

A afirmação do Coringa não é apenas contra a opressão das autoridades, ou de uma casta burguesa. A luta é contra qualquer repugnância à diferença, como na cena do ônibus, onde o protagonista é desqualificado por uma senhora negra aparentemente de classe baixa que “protegia” seu filho da estranheza, feia como tudo aquilo que não é espelho.

Coringa entra, então, pelo furo/buraco do sistema, provocando efeito crescente, assim como o vírus que enfrentamos em tempos de pandemia. “Suja a canastra” (como o curinga do baralho), mas “bate” no sistema e “pega o morto”, ou seja, reúne todas as cartas abandonadas do baralho e pode virar o jogo a seu favor.

O poder vigente agora teme a horda dos José Ninguém. A cidade é temporariamente tomada (mas não controlada, pois há desordem e não uma nova ordem), o caos se espalha como um grande bug.

O emblema do “sorriso fora de hora” agora representa o sorriso demoníaco, o fantasma da desordem da vida cotidiana, o fantasma do riso livre.
Adaptando do filósofo Kierkegaard (“Diário de um Sedutor”), o maior presente que se pode oferecer a alguém é o seu próprio constrangimento.
Este é o presente de grego do Coringa à sociedade.

No filme “Em Busca da Terra do Nunca”, o autor criativo percebe que a única forma de inserir uma nova linguagem teatral em um sistema viciado seria colocar “uma criança a cada dez assentos” na noite de estreia. Sua proposta é exatamente um efeito disruptivo na repugnância à diferença. O horror à mudança talvez cedesse, fraquejasse ante a liberdade de uma criança.

Nessa história de Peter Pan, a ternura incita a revolução; já no “Coringa”, é a agressividade, a sátira perversa (no sentido psicanalítico, não enquanto maldade) que faz o mesmo papel.

Os ratos de Gotham City saem dos esgotos, rebelando-se contra a morte induzida por Cloroquina. O grito desesperado é por dignidade humana, por legitimar sua existência, seu direito a habitar a Terra sem pudor. Sem licença, eles vão à luta. Luta inglória, êxito fugaz. “Vitória de Pirro”? Não. A vitória aqui tem um efeito maior. Efeito de redenção. “Efeito de sujeito”, como sustenta o psicanalista Contardo Calligaris em uma pensabilidade lacaniana.

Nesse ponto, talvez repouse o cerne da revolução do Coringa: a redenção do efeito de sujeito. O instante épico está muito além da vitória num sentido estrito. O triunfo aqui tem efeito subjetivante, deixa resíduo eterno. Mais do que mártires sociais, os Coringas naquela noite obtiveram uma identidade própria, no sentido mais íntimo do termo. Asseguraram um lugar subjetivo, não passível de expropriação. Dali, ninguém mais os tira. Estão, enfim, presos do lado de dentro.

Séries Diferenciadas (Netflix e outras)

Pra não dizer q não falei de séries…
Aqui sim, a Netflix apresenta conteúdo de valor. Os critérios q uso para ver uma série são:

A) Quantas séries têm o mesmo nível de um excelente filme? Raríssimas, na minha opinião. Ao menos por enquanto… Este critério vale para sempre optar pelos filmes. Porém, é claro q há momentos em q queremos um mergulho mais ágil, onde podemos interromper a qualquer momento, diariamente. Sinal dos tempos, inevitável. Daí outros critérios merecem espaço, na escolha de uma boa série.

B) Atores de alto nível, independentemente de serem conhecidos ou não. Diferentemente de um filme, onde as atuações não são necessárias (Star Wars, por exemplo, é um roteiro imortalizado, com praticamente todos os atores fracos), nas séries é um critério central, pois acompanharemos aqueles personagens por um período longo e, geralmente, com a trama girando em torno deles.

C) Enredos q não tentem segurar o espectador com idas e vindas previsíveis, circulares. A sensação de “novela” (no pior sentido do termo, pois “Roque Santeiro”, por exemplo, não utilizava estes subterfúgios fáceis) não pode existir. Pode ser uma saga, mas não um constante enxerto de pseudo-dramas. Ou seja, cada capítulo, ou temporada, deve realmente fazer diferença.

D) O tema deve ter algum interesse prévio. Aqui, o critério é ainda mais singular, obviamente.

Dito isto, listo apenas algumas séries, quase todas na Netflix (sendo “Black Mirror” a única hors concours):

1) “Black Mirror”: Obra-prima! Cada episódio, ou temporada, não tem nenhuma ligação direta com os outros, salvo o fio condutor de um “espelho negro” de nosso futuro. Sugiro começar pelo episódio 3 da primeira temporada, pois os dois anteriores não são tão interessantes (algo raro nesta série). Destaque para “Nosedive”, o melhor de todos. Seriado duro, plausível, e extremamente inteligente. Arte pura, imperdível.

2) “Friends”: Um clássico, muito antes da “era das séries”. Diálogos brilhantes, personagens perfeitos, história redonda.

3)* “Game of Thrones”: Legiões de fãs pelo mundo, avaliando cada detalhe com muito amor e ódio. Sem dúvida, para quem gosta do gênero, é uma obra de arte. Da “HBO”, ver no “Now”.

4) “El Marginal – O cara de fora”: Grata surpresa. O ambiente de um presídio, maravilhosamente criado, com personagens extremamente interessantes, vividos por excelentes atores. Pesado apenas em alguns instantes, linguagem machista típica daquele microcosmo, porém nada descredencia a história muito bem montada, com diálogos memoráveis, humor ácido, disputas de poder realistas. O diretor consegue q todos os personagens fiquem gravados em nossa memória, algo raríssimo.

5) “Narcos”: Personagens reais, trazendo uma versão da história recente na Colômbia e no México. Dinâmica, entremeando com cenas de telejornais à época.

6) “Dark”: Roteiro bastante complexo, com idas e vindas cronológicas articuladas com inteligência, a ponto de dificultar um pouco no início a discriminação de cada personagem.

7) “Arremesso Final”: Excelente. Os bastidores da história dos 6 títulos do Chicago Bulls na NBA (liga de basquete dos EUA). Roteiro primoroso, edição diferenciada. Para curtir, não é preciso amar basquete, pois este entra como pano de fundo. O destaque é dado às relações humanas entre jogadores, dirigentes, família, mídia e torcedores.

8) “Vikings”: Produzida pelo “History Channel”, inspirada em fatos reais, uma aventura interessante, antimaniqueísta, sem nenhum personagem bonzinho.

9) “Atypical”: Quase todos os atores estão excelentes, numa trama familiar em torno de um personagem autista. Tem algo novelesco, mas vale conferir.

10)* “American Horror Story”: Apenas para os fãs de horror e suspense. Cada temporada é independente das outras (nem todas são boas), destaque para as temporadas 2 e 6. Tem na “Claro Vídeo”.

Dicas pra quarentena na Netflix

Abstinentes de Cinema, restam-nos algumas opções, sendo a Netflix a mais rapidamente acessada. O grande problema é q esta é uma plataforma muito boa para séries, porém muito fraca para filmes, especialmente os considerados “de arte”. Buscando as boas exceções, eu quis ocupar um tempo selecionando-as para quem se interessar.
Aqui vão, sem ordem de preferência, e misturados os hollywoodianos com os mais diferenciados:

– “Assunto de Família”: Excelente!! Sensibilidade ímpar, beleza rara. O retrato de uma “família”, onde o afeto é o protagonista, e os adultos ensinam “o q sabem”, para além das óbvias implicações educacionais para as crianças. Muito para além do maniqueísmo do politicamente correto, o grande diretor japonês Hirokazu Kore-Eda (do duríssimo e também excelente “Ninguém Pode Saber”) apresenta um drama inequivocamente comprometido com as verdades do submundo da miséria, as leis do cotidiano q vive a despeito de políticos, policiais e assistentes sociais. A transgressão aqui corresponde não apenas ao risco, a um posicionamento na contracultura, ou a uma glamourização do poder vivenciado pelo transgressor, mas sim a uma saída pró-Eros, uma resistência sem retóricas, uma assunção do afeto como lei central, custe o q custar (como a discussão de Almodóvar em “Fale com Ela”). Atuações brilhantes, imperdível. Ver mais no post “Só o Afeto Interessa (‘Assunto de Família’)”, no blog “psicanalisenocinema.com”.

– “O Poço”: Ótima discussão, roteiro simples e muito interessante. Na mão de um Aronofsky, ficaria uma obra-prima.

– “O Cidadão Ilustre”: Obra-prima. Os diretores argentinos acertaram de ponta a ponta: construção de roteiro perfeita, argumento consistente, tensão crível, humor ácido e inteligente, e atuação impecável do excelente protagonista Oscar Martínez. Brilhante.

– “XXY”: Maravilhoso filme sobre uma adolescente hermafrodita. Sensibilidade rara. Ricardo Darín, como sempre, ótimo.

– “A Noite de 12 Anos”: Emocionante! A história real de José Mujica e outros 2 companheiros de militância contra a ditadura uruguaia, presos e torturados por mais de 1 década. As condições de sobrevivência física e emocional são postas em detalhes, especialmente os episódios psicóticos – alucinações e delírios – do protagonista, q mais tarde se tornaria presidente do país. Na sessão a q assisti, a plateia aplaudiu gritando “Bravo!”, a ponto do segurança ir conferir se era briga. Imperdível.

– “El Pepe”: Doc sobre Mujica, pra quem se interessa pela história não maniqueísta do líder uruguaio.

– “O Som ao Redor”: Obra-prima máxima de Kleber Mendonça Filho. O olhar sensível sobre o entorno (o real protagonista do filme) é extremamente singular.

– “Estou me Guardando para quando o Carnaval Chegar”: Excelente! A direção de Marcelo Gomes (da obra-prima “Cinema, Aspirinas e Urubus”) extrai arte pura de cada detalhe da cidade de Toritama, interior de Pernambuco. O crescimento da cidade é filmado à perfeição, através do processo de consecução de jeans, produto responsável por uma revolução ali. Onde antes tudo era rural – agricultura e pecuária de subsistência -, agora são trabalhadores, a maioria autônomos ou ganhando por bônus de produtividade. Em q pese a óbvia crítica às explorações do Capitalismo, os personagens deste doc assumem suas escolhas, e ainda circulam todo o ganho no sonho do Carnaval nas lindas praias de Alagoas. Imperdível.

– “Com Amor, Van Gogh”: Excelente! 100 pintores desenharam esta obra, contando a história real e as especulações sobre a morte de Van Gogh. O estilo de pintura é como se o próprio artista tivesse realizado esta animação; além disso, a história é ambientada nos cenários dos quadros do holandês. Extremamente triste, o filme enfatiza a solidão e a culpa crônicas de Van Gogh. Imperdível.

– “A Senhora da Van”: Maravilhoso. Um tratado brilhante sobre errância psicótica. Atuações SOBERBAS dos 2 protagonistas Maggie Smith e Alex Jennings. O filme e os atores mereceriam todos os prêmios possíveis. Direção irretocável de Nicholas Hytner. Imperdível!

– “Elena”: Obra-prima de máxima sensibilidade de Petra Costa, a melhor diretora brasileira da atualidade. Filme radicalmente autoral, para além de ser um doc autobiográfico. O atravessamento de sua dor pela perda da irmã Elena é vivido visceralmente, sem concessões, até q possa, enfim, voltar a respirar. Petra filma à perfeição, tanto dor, quanto amor, melancolia (da mãe) e a própria sublimação de seu fantasma.

– “Cinema, Aspirinas e Urubus”: Obra-prima de Marcelo Gomes, com João Miguel brilhante, como sempre.

– “Olmo e a Gaivota”: Praticamente uma obra-prima. Após estrear na direção com o incomparável “Elena”, Petra Costa consolida seu lugar no cenário mundial com este “semi-documentário” – todo falado em francês. Sempre consistente, o filme emociona progressivamente até seu ápice, num belo e singelo acabamento.

– “A Grande Aposta”: Ótimo, bem acima das expectativas, para um filme tão hollywoodiano. Christian Bale, um dos melhores atores do mundo, protagoniza uma aula de história e economia com excelentes pitadas de ironia – lembrando um pouco “Super Size Me” – dirigida à estupidez do americano típico, para além de seu “nível social”. A fanfarronice fálica dos americanos é levada às raias do patético. Steve Carell está magistral em sua atuação. Merecia o Oscar de Melhor Filme.

– “Invocação do Mal” / “Sobrenatural” / “Annabelle”: Ótimos filmes. Pra quem gosta do gênero terror/suspense, James Wan é o melhor diretor da atualidade. Seu toque garante sustos e entretenimento de qualidade a todas as histórias q pega.

– “Prenda-me se For Capaz”: Maravilhoso. DiCaprio e Tom Hanks dançam numa alegoria sobre a perversão errante.

– “Moonlight”: Incrível. Denso nas discussões sobre a solidão do protagonista, complexo na construção de sua homossexualidade, abrangente no mérito de usar uma linguagem palatável até mesmo ao limitado e viciado universo hollywoodiano. De grande qualidade artística, atuações excelentes, fotografia precisa. Destaque para a belíssima cena final, desde q o protagonista tira sua dentadura dourada, até encostar no peito de seu amigo/paixão.

– “Divertida Mente”: Uma das melhores animações de todos os tempos. Filme para adultos, com um roteiro brilhante.

– “Monty Python”: Todos obras-primas para se rever. Considero o melhor humor de todos os tempos.

– “A Origem”: Obra-prima de Christopher Nolan, sempre com as distorções temporais como núcleo temático.

– “O Poderoso Chefão”: Eternamente deliciosa trilogia para se rever.

– “Forrest Gump”: Obra-prima. Fábula sobre a psicose errante. Versão hollywoodiana de “Zelig”, de Woody Allen.

– “Sociedade dos Poetas Mortos”: Clássico inesquecível, hiper sensível. Papel-mor de Robin Williams.

– “O Profissional”: Excelente policial de Luc Besson sobre um matador profissional (Jean Reno), sem sentimentos ruins, nem bons (perversão errante), até conhecer uma menina (Natalie Portman).

– “Eu, Daniel Blake”: Muito bom. O filme começa excelente, expondo o drama de um senhor recém infartado, preso nos bizarros corredores de uma burocracia kafkiana – não pode trabalhar, nem receber seu auxílio do governo. Flertando com a fome, o frio, a agressão e a loucura, o protagonista agoniza sempre numa fleuma britânica. Do meio pro final, o diretor Ken Loach resvala no melodrama e perde um pouco a mão de sua obra, uma espécie de “relato selvagem” novelesco.

– “Pulp Fiction”: Clássico Tarantino, estética ímpar.

– “O Filme da Minha Vida”: Ótimo! O filme começa apenas ok, cresce muito ao longo da projeção, até encerrar com maestria. Selton Mello (de “O Cheiro do Ralo”), o melhor ator do país, vai muito bem como diretor (como em “O Palhaço”), ainda q naturalmente possa evoluir nesta função. Ótimas frases, atuações em muito bom nível, destaque para o personagem do próprio Selton.

– “Senhor dos Anéis”: Obra-prima de referência para todos os amantes do gênero.

– “Seven”: Ótimo suspense/policial.

– “Um Dia a Casa Cai”: Humor leve e despretensioso.

– “Curtindo a Vida Adoidado”: Clássico dos anos 80, outra comédia leve.

– “Dia de Treinamento”: Para quem deseja um filme de ação e adrenalina, despretensioso e bom.

– “Gênio Indomável”: Hollywoodiano, com Robin Williams e Matt Damon.

– “Up – Altas aventuras”: Ótima animação, super sensível.

Só o Afeto Interessa (“Assunto de Família”)

Poucas vezes vemos no cinema um diretor conseguir ser totalmente preciso no q pretende transmitir, sem recorrer a panfletagens, ou a agressões retóricas ao sistema de pensamento oposto. O japonês Hirokazu Kore-Eda, em “Assunto de Família”, atingiu com plenitude este objetivo, com a eficácia de um atirador de elite. Refiro-me com isto à colocação do afeto como significante central no filme, como protagonista único.
Relembro a obra-prima máxima neste sentido, onde o fora-de-série Almodóvar contempla mais do q ninguém na História este intento, com o clássico “Fale com Ela”. Aqui, o enfermeiro “Benigno” sustenta a fé na recuperação de uma paciente em coma duradouro, cuidando de maneira indescritível ao olhar e à interpretação do senso comum. O “milagre” acontece através de um abuso sexual, demarcando a transgressão como uma decisão para além da suportabilidade social. Como disse certa vez uma pessoa muito querida, o transgressor passa a viver num eremitério (neologismo criado por ele mesmo), assumindo com isto todos os enormes custos desta decisão. Este eremita, portanto, morreu para o mundo. Não possui a esperança do retorno, não conta com a possibilidade de volta, portanto não se tornará música, como o “irmão do Henfil”, nem presidente, como José Mujica.
Aos transgressores aqui mencionados, apesar de “benignos”, só restará a morte, a prisão perpétua, o banimento social. Estarão “Presos do Lado de Fora”, como no poético livro da psicanalista Solal Rabinovitch sobre a Psicose. E eles sabem disso, como assume o personagem acusado de estupro na obra-prima “O Processo do Desejo”, de Marco Bellocchio. Aqui, nunca haverá amparo da Lei, nem resgate, ou grupo de oposição. No máximo, uma resistência ínfima pela Arte como um todo, não apenas o Cinema. Em mais um exemplo deste pequeno reduto do pensar, o filme “Una” discute os desdobramentos de um ato pedófilo, para além da condenação jurídica, socialmente justificada. A antes menina, agora mulher, necessita de uma costura própria de sua história, a ser realizada necessariamente com o pedófilo, após o tempo q este passa no presídio.
A questão, portanto, diz respeito à possibilidade de uma continuidade da discussão da humanidade, dos sentimentos, muito pr’além dos parâmetros criminais. “Vítima” e “algoz” representam funções e lugares sociais, sentimentos humanos, acontecimentos marcantes, “paisagens subjetivantes”. O processo de construção psíquica, sem fim, necessita de ampliação de parâmetros, de um não apaziguamento após uma condenação (justa ou não). O vilão mor da humanidade sempre será o maniqueísmo, terra eternamente fértil à mediocridade de todos nós.
Em “Assunto de Família”, como o próprio título discretamente sustenta, precisamos falar sobre afeto na intimidade. Não para condenar ou para absolver uma “família” q acolhe pessoas mal tratadas por seus pais biológicos, mas para denunciar o abandono social. A denúncia, aqui, recai sobre as “baratas no canto da parede”, onde nosso salto não alcança, apenas se cansa. A destruição psíquica de um abandono afetivo pode ganhar um pequeno alento nas leis de um outro cotidiano, onde outras leis se dão, onde uma outra vida acontece.
As denúncias proliferam recentemente no cinema, como nos excelentes “Cafarnaum” e “Ciganos da Ciambra”. Porém, “Assunto de Família” é mais preciso, para além de ser ou não melhor filme do q esses outros. Kore-Eda não se distrai, não trai seu propósito nem por um instante, não coloca relevo na estética da miséria, nem nos absurdos das leis constitucionais. O diretor, assim como os personagens, não abandona o afeto por nada, “não sai de si nem para pescar” (como diz o grande poeta Manoel de Barros).
O resultado diferencial? Um filme sereno. Uma extrema leveza num tema pesadíssimo como o abandono dos pais, ou a cegueira da sociedade. Uma calma q suplanta o poder das denúncias, q muitas vezes serve de alento à nossa solidão.
Não há apelações, esperança jurídica. Não haverá heroísmo redentor. Resta a silenciosa verdade interna. A história contada de nós para nós mesmos, a versão não compartilhada, vivida apenas na solitude. O demasiadamente humano de Nietzsche. Tristeza e alegria numa pacificada verdade própria, sem mediação. A vida na dor e na delícia do “desamparo fundamental” freudiano.

A Dança do Vazio (“De Canção em Canção”)

Na obra-prima “De Canção em Canção”, o diretor Terrence Malick dá uma aula magistral de fotografia. Com uma edição lisérgica e bastante desconstrutivista, hipnotiza o espectador numa dança infinita entre os personagens, seu glamour, seus medos, seu tesão, e, principalmente, seu vazio.

As ótimas atuações de Ryan Gosling, Michael Fassbender e Rooney Mara fazem um diferencial na “dança em transe” em q o diretor nos embala. Transmite o vazio sem necessitar de nenhuma trucagem aguda, nenhuma cena trágica, nenhum acontecimento bizarro. Sequer utiliza qualquer droga ilícita para criar a atmosfera de uma espécie de “Walking Dead” estilizado. Com isto, escolhe um caminho oposto, por exemplo, de Darren Aronofsky em sua obra-prima “Réquiem para um Sonho”, q expõe as veias abertas do vazio de seus personagens.

Malick começa com algumas cenas de bastidores do mundo da música, celebridades, beleza, sedução. Passa para a sexualidade, exprimindo muito mais uma sensualidade do q o sexo explícito (novamente opta pela “transmissão sem trucagens). Daí insere o ciúme, os jogos de poder, uma espécie de ménage insinuado, sempre de forma indireta.

Bem aos poucos, o sorriso do espectador vai sumindo, a despeito de sua própria percepção. A depressão silenciosa, enfim, começa a se anunciar. A personagem de Rooney Mara encontra o pai, apresentado a nós como um abandonador blasé. Malick larga este pai imediatamente, retirando-nos um álibi clichê. Como na brilhante e eterna frase de Mikhail Bakhtin: “Não há álibi para a existência”.

A partir daí, a angústia engole a tela, definitivamente. Os personagens dançam o desencontro, exibindo sua enorme impotência ante a seus desejos de vinculação. O personagem de Ryan Gosling até tenta uma aproximação maior com a de Rooney Mara, obviamente sem sucesso. O de Fassbender imediatamente se esquiva, por ser o maior “fiador” do espetáculo da indiferença, do vazio. “Adquire” outro espécime sedento por algum prazer maior (a personagem de Natalie Portman), e reinicia sua repetição sintomática (como no final do filme “Mãe!”, também de Aronofsky).

Desiludido, o personagem de Gosling procura uma saída numa nova relação com uma mulher mais velha, supostamente mais consistente (onde entra Cate Blanchett). Ledo engano. Nenhum ser humano consegue êxito quando tenta “morar fora”, ou seja, afastar-se geograficamente de seus fantasmas. Como diria Freud, o “recalcado” sempre retorna. O escapismo também é a saída buscada pela personagem de Mara, num “relacionamento” amoroso com uma mulher.

Já desesperados, as gambiarras não funcionam mais, o suicídio passa a ser uma opção mais honesta.

Ou alguma generosidade consigo e para com o outro, caso suportassem e pudessem crer e apostar num processo de atravessamento do fantasma, a única opção humanamente consistente.

A Psicanálise, não enquanto panaceia, é tão somente uma das possibilidades de aprofundamento subjetivo, assim como a Arte ou a Filosofia. Não apenas os heróis de Cazuza morreram de overdose, como também nossos paliativos emocionais, nossos escapismos e maquiagens possuem prazo de validade. Vazio não admite álibi, nem é suficientemente sedado por antidepressivos ou ansiolíticos, maconha ou cocaína, redes sociais ou afins. Como em “O Sétimo Selo” (Bergman), a morte não será enganada, nem durante a vida. Restaria algum acordo mais honesto, como no desfecho de “Palermo Shooting”, de Wim Wenders, o maior dos diretores de Cinema.

 

A Foto do Trauma (“Na Ventania”)

Há muito tempo eu não vivia uma sessão memorável no cinema, daquelas de alterar todo o funcionamento corporal, lágrimas e silêncio, estupefação plena, como o q ocorreu ao assistir à obra-prima “Na Ventania”. Dos em torno de 100 filmes q consigo assistir por ano, muitos são excelentes. Nesses, encontro apenas uns 5 maravilhosos, em média; 1 ou 2 desses, considero obras-primas. “Na Ventania” é um degrau acima, é um dos inesquecíveis, eternos, a entrar na lista dos melhores da vida, algo q demora alguns anos a surgir…

Fotografia poética. Poderia ficar com apenas esta tosca tentativa de “definição”. Isto pq o delicado poder da fotografia enquanto canal de transmissão especialmente tende a calar, a praticamente impedir o acesso sempre capenga das palavras. Poderia-se afirmar q todas as expressões artísticas vão aonde o verbo não alcança. Ok, porém costumeiramente nos aventuramos a comentar filmes ou livros, tal como aqui neste blog. Artes como Pintura, Fotografia e Dança talvez provoquem um outro percurso emocional, por onde o dito tem pouco ou nenhum recurso…

Enfim, já q essa ventania me assoprou a escrever, q isso seja o q puder. O diretor Martti Helde (Estônia) expõe de forma dura, seca e nada apelativa a dor da Guerra (tema já tão batido no cinema). Para tal, parte das cartas de uma mulher (estudante de filosofia, isso faz diferença) q foi levada a um campo de trabalho forçado com sua filha pequena, a seu marido numa prisão de guerra.

A brilhante câmera do diretor congela cada cena (os atores ficam parados) e a percorre muito vagarosamente, frame a frame, trazendo uma luz do insuportável ao trauma, ao absurdo (ao Real de Lacan, para fazer um paralelo psicanalítico). Com isso, inscreve a dor impossível como possível, ao menos parcialmente, é claro.

A metáfora do traumático, “paralisada” pela fotografia, traz ao espectador uma tese sobre a memória humana. De q forma – pensaria o diretor do filme – a emoção traumática tatua a carne do ser humano durante a Guerra? Exatamente através de fotografias, assim o bárbaro marca em definitivo o corpo subjetivo, inscrevendo o surrealismo das imagens sem representação outra, apenas um choque, como um flash das máquinas mais antigas.

Assim, o diretor de “Na Ventania” nos brinda com uma aula de fazer cinema, um jorro de sensibilidade, uma hipótese psíquica sobre a memória durante a Guerra (aqui, o holocausto soviético). Martti Helde não diferencia as dores – da separação da família à morte concreta, das sofridas imagens dos outros às de si mesmo -, apresenta-as todas no mesmo vagar, na toada do insuportável q tem q caber. Outros diretores, como o magistral Alain Resnais (“Hiroshima, Mon Amour”, “Noite e Neblina”) já haviam realizado obras marcantes através da fotografia e sobre o mesmo tema do absurdo da Guerra, mas arrisco dizer q aqui foi inventada uma outra forma de criação cinematográfica. Com o bônus de uma tese metapsicológica sobre a memória do traumático. Brilhante, arrebatador. Tato pra atuar o tatuar.

 

15 Melhores Filmes Brasileiros de Todos os Tempos

Sempre resisti à ideia de fazer este tipo de lista dos “melhores”. Sempre achei q isso não serviria para praticamente nada, apenas um exercício de vaidade pública. Mudei de ideia, hj penso q pode ser apenas uma troca de experiências e sensações, prazerosa e despretensiosa.

Listar os melhores filmes sempre provoca justos questionamentos, como: “Faltou o Glauber!!”, “Sem Nelson Pereira dos Santos não faz sentido.”. Enfim, só o q sempre resta é fazer algo pessoal. Então, o critério aqui será: os 15 brasileiros q mais me afetaram, impactaram. Não vou discutir aspectos técnicos, nem qualidade artística do diretor ou das atuações, especificamente. Tudo ficará incluído nesta categoria escolhida, nomeada “afetação/impacto/atravessamento”. Por último, “Por que 15 e não 10, ou 50?”: pq este número acabou sendo resultado dos q não consegui excluir. Os restantes q também adorei estão na Grande Lista (ler mais no post “Grande Lista de Filmes (atualizada constantemente)”, aqui neste blog.

Sem mais delongas, aqui vão os 15, em ordem de afetação, c/ breves comentários:

1) “Janela da Alma”: Maravilhoso, poético, irretocável. João Jardim e Walter Carvalho dirigem Wim Wenders, Saramago, Manoel de Barros, Oliver Sacks, Hermeto Pascoal, João Ubaldo, etc. Emocionante, depoimentos extremamente inteligentes e sensíveis.

2) “Vinícius”: Além de Vinícius de Moraes ser um poeta dos maiores, o diretor Miguel Faria Jr. apresenta de forma preciosa sua história, parceiros, idiossincrasias, polêmicas, intensidades. Inúmeras falas inesquecíveis, como as de Ferreira Gullar, Maria Bethânia, Chico Buarque e Tonia Carrero. Além de interpretações tocantes de suas músicas, como a de Mônica Salmaso. O único senão é a presença tosca da fraquíssima Camila Morgado.

3) “Elena”: Obra-prima de máxima sensibilidade de Petra Costa, a melhor diretora brasileira. Filme radicalmente autoral, para além de ser um doc autobiográfico. O atravessamento de sua dor pela perda da irmã Elena é vivido visceralmente, sem concessões, até q possa, enfim, voltar a respirar. Petra filma à perfeição, tanto dor, quanto amor, melancolia (da mãe) e a própria sublimação de seu fantasma.

4) “Moscou”: A obra-prima máxima do melhor documentarista do Brasil, e um dos mais importantes do mundo: Eduardo Coutinho. Seguindo a potência de seu filme anterior “Jogo de Cena”, outra obra-prima, o diretor aprofunda sua criatividade e sensibilidade artística filmando o Grupo Galpão de teatro ensaiar uma peça de Tchekhov, q nunca seria exibida ao público. Os atores se revezam ensaiando papéis diferentes, o q provoca um jorro de afetação no espectador, pois este recurso lança cada personagem com muito mais força, transmitido por mais de um ator. Incrível.

5) “Ônibus 174”: Excelente doc de José Padilha, um de nossos melhores diretores. Contundente, sério e minucioso. A tragédia do sequestro de um ônibus na Zona Sul do Rio de Janeiro sendo contada de forma a retratar a “invisibilidade” dos meninos de rua, e os horrores de suas história de vida. O sequestrador, na infância, assistiu à sua mãe ser degolada na porta de sua casa, e anos depois esteve entre os meninos da chamada “chacina da Candelária”, onde 8 adolescentes foram gratuitamente assassinados por policiais militares. No filme, destaque para a cena em q o sequestrador, mesmo drogado, liberta um jovem universitário, para q este possa estudar.

6) “Moacir – Arte bruta”: Extremamente sensível. O diretor Walter Carvalho atinge a perfeição ao trazer um retrato tocante de um artista q contrariou o “pensamento” preconceituoso de sua vila (São Jorge), para inscrever suas pinturas no cenário mundial (foi descoberto por turistas alemães). Seus temas – sexualidade e diabos – causam horror na hipocrisia daquela sociedade, q quase consegue encarcerá-lo, literalmente. A sensibilidade de seu pai e de um ou outro na vila acabam por sustentar seus direitos humanos. Sua mãe, psicotizante, enfiava concretamente seu peito no garoto (Moacir tinha então 2 anos), quando este já não aceitava mais.  É um homem da resistência, surdo de um ouvido, analfabeto e fanho, mas mais belo e forte do q a maioria das pessoas q já conheci. Já utilizei este filme várias vezes em aulas sobre a potência da psicose. Cheguei a visitar o próprio Moacir em São Jorge (Goiás), e encontrei um cenário triste: uma doença degenerativa o impede de continuar pintando. Terrível… Ainda assim, ele foi super gentil. Eternamente um resistente.

7) “Separações”: O melhor de todos os filmes de Domingos Oliveira, um dos melhores diretores brasileiros. Com um escracho generalizado um tanto à la Woody Allen, o humor deste filme é ímpar. Reviravoltas com simplicidade e inteligência nos diálogos, Domingos arrasa todo e qualquer maniqueísmo, trazendo o desamparo e as tentações com igual intensidade entre homem e mulher. O respeito não panfletário à igualdade grita nos conflitos e agonias poéticas e histriônicas dos personagens, flertando com o patético mas encerrando na beleza demasiadamente humana dos casais.

8) “O Invasor”: Belíssimo e extremamente preciso trabalho do diretor Beto Brant. Um tratado de Psicanálise sobre a relação da Neurose com a Perversão. Paulo Miklos (da banda “Titãs”) atua à perfeição como um matador q resolve “frequentar” a firma de 2 sócios q o contrataram para matar o terceiro. Falas inesquecíveis, olhares e tensões de poder minuciosamente colocados. Obra-prima irretocável.

9) “Nome Próprio”: O diretor Murilo Salles atinge o brilhantismo nesta obra impressionante, com um título perfeito. O nomadismo da protagonista incomoda o público, causando em muitos a sensação de q as escolhas da personagem seriam bizarras. Sua liberdade – não glamourizada – evidencia os aprisionamentos até dos espectadores menos preconceituosos. Virtuosismo notável da direção. Ler mais no post “Estilo X Pejorativismo (sobre ‘Nome Próprio’)”, aqui neste blog.

10) “O Cheiro do Ralo”: O maior trabalho da vida de Selton Mello, um dos melhores atores brasileiros (chego a considerar q este filme, especificamente, não seria possível com outro ator). Articular traços psicóticos e perversos num único personagem – tarefa praticamente impossível – foi o q o diretor Heitor Dhalia conseguiu realizar, com precisão impressionante, na parceria com Selton.

11) “Jogo de Cena”: Mais uma obra-prima do diretor Eduardo Coutinho. “Documentário” sobre as histórias de vida de algumas personagens, apresentadas subsequentemente pelas próprias, por algumas atrizes conhecidas – as brilhantes Marília Pêra, Fernanda Torres e Andréa Beltrão – e outras desconhecidas. Essa “bagunça” desconstrutiva provoca com bastante intensidade a desorganização do espectador. Ficam, entre outras, as questões: o q é o autêntico? O q é ficção? Estes são pontos bastante centrais na filmografia do mestre Eduardo Coutinho.

12) “Doutores da Alegria”: Documentário belíssimo e extremamente emocionante da diretora Mara Mourão, sobre o grupo de palhaços q criaram um trabalho dificílimo com crianças portadoras de câncer. Minuciosamente, os palhaços pensam cada sutileza – a entrada e a saída do quarto, a recusa da criança, a função do nariz vermelho, da música -, inclusive fazendo um grupo de estudos de filosofia, discutindo Spinoza, etc. A sensibilidade e a inteligência dos integrantes do grupo é absurda. A chorar muitas lágrimas de dor e alegria…

13) “Dzi Croquettes”: Excelente documentário dos diretores Raphael Alvarez e Tatiana Issa, sobre o grupo de teatro e dança multi performático. O tema sexualidade era exposto radicalment –  para além da chamada “opção sexual”. A intensidade e genialidade dos membros fez com q não sofressem praticamente nenhuma repressão na época da ditadura. Criativo ao extremo na transmissão da arte. Destaque para os depoimentos de Liza Minnelli e Miéle.

14) “O Som ao Redor”: Filme extremamente denso, desviando nossa atenção dos eixos viciados do nosso olhar, para outras perspectivas. Para além do silêncio – já bastante bem explorado na história do cinema -, o diretor Kleber Mendonça Filho de fato mira o entorno do cotidiano. E o faz com rara qualidade, insistentemente, até q nos desapegamos em definitivo de nossas tendenciosas perspectivas anteriores. A história, geralmente central, fica deslocada para a margem.

15) “Tropa de Elite”: Poderia ser apenas um filme policial intenso e dinâmico, mas vai muito além. Multifacetada trama de costumes, apresenta uma perspectiva de bastidores do sistema policial brasileiro. Com precioso senso de humor, imortalizou bordões como “Quer rir, tem q fazer rir, mano!”, “Quer me fuder, me beija!” e “Cada cachorro q lamba sua caceta!”. Algumas críticas de superficialidade maniqueísta acusaram o diretor José Padilha de traçar um perfil tendencioso pró BOPE, ao q ele retrucou: “Quando fiz ‘Ônibus 174’, disseram q sou pró bandidagem; agora, com o ‘Tropa’, dizem q sou pró polícia. Acho q sou esquizofrênico.”. Pra completar, a ótima atuação de Wagner Moura.

Arte Noir à la Tarantino / Robert Rodriguez em “Garota Sombria Caminha pela Noite”

Uma grata surpresa este filme americano de uma diretora estreante, Ana Lily Amirpour, inglesa de pais iranianos. Estética noir de alta qualidade numa cidade industrial no Irã praticamente abandonada, “Bad City” (referência direta ao clássico “Sin City”, de Robert Rodriguez, a mais forte alusão do filme como um todo). As influências / homenagens são múltiplas e prazerosas: o protagonista lembra um James Dean mais tímido e discreto; as cenas de tensão entre a vampira e cada possível vítima são à moda western spaghetti; a trilha lembra Ennio Morricone nos clássicos de Sergio Leone, e noutros momentos homenageia os anos 80; o humor é muito ao estilo Tarantino. Resultado: um delicioso filme de arte do cinema dito fantástico.
A história, apesar de menos fundamental do q a forma, tem seu valor para compor a obra. Uma vampira no Irã (q tenderia a ser uma bizarrice) mata transeuntes noturnos, geralmente perdidos. Aos poucos, percebe-se q ela faz escolhas. O machismo de um traficante caricato expõe a falta de lugar da mulher naquele país. O pai do protagonista, viciado em heroína, flerta c/ a morte diariamente. Um menino expõe a carência de vínculos da cidade q morre (também metaforizada por um valão onde os mortos são jogados, ficando indefinidamente lá, em sua indigência sem saída). A prostituta de 30 anos vive a submissão masoquista à desesperança da mulher descasada naquela sociedade. A cidade padece na mórbida dependência de apenas uma única indústria ativa. Os últimos resquícios de amor e afeto são vividos até a última gota, tragicamente. O último a sair apague a luz. As trevas de uma vampira, portanto, são metáfora precisa, assim como a aridez de um “velho oeste”.
Quanto aos detalhes psicanalíticos, o modo de sedução não assumida ou sustentada de personagens histéricos (nunca confundir com gritaria ou surto, como entendidos no senso comum), assim como sua carência também desconhecida de si mesmos, formam um quadro marcante e recorrente nas tramas relacionais da história.
Enfim, um belo filme de arte a saborear, em seus mínimos detalhes, ao ritmo de um menu-degustação.

Freud, Dostoiévski, Kafka/Welles e Masud Khan nos filmes “O Duplo” e “O Processo”

Tive uma grata surpresa ao assistir a “O Duplo”, baseado no romance homônimo de Dostoiévski. Adaptação muito interessante, fotografia de ótimo nível em tons cinza escuro. O protagonista começa perdendo seu lugar num metrô vazio para um estranho, q rapidamente vamos percebendo ser seu alter ego, versão proativa e super autoconfiante (oposição imaginária à sua realidade de inércia e apagamento).

Inicialmente, este “outro” personagem soa como um parceiro alvissareiro, estimulando seu crescimento na empresa onde trabalha. O ambiente profissional é surrealisticamente burocrático, lembrando “O Processo” (obra-prima de Kafka, adaptado ao cinema por Orson Welles) e “O Castelo” (também do escritor tcheco), cheio de “pequenos poderes” em forma de labirinto intransponível. Ao alter ego, no entanto, tudo é facilitado, as portas sempre se abrem, as pessoas sorriem e mostram reconhecimento por seus atos.

Portanto, este “outro” inicialmente faz a função de “ideal do eu” (conceito freudiano referente às nossas prospecções e expectativas subjetivas, para dizer de forma sucinta), apresentando um caminho de norteamento evolutivo. Aos poucos, esta alteridade toma a forma de supereu tirânico (Freud), massacrando o protagonista, empurrando-o a uma espécie de “zero absoluto”, metaforicamente um suicídio. Novamente, a analogia com o “Sr. K” de “O Processo” é direta. Melanie Klein, q deixou seu nome marcado na história da Psicanálise, falava da “posição esquizo-paranoide”, quando o sujeito teme um aniquilamento proveniente de paradeiro desconhecido, questão bastante patente na angústia do protagonista de “O Duplo”.

Enquanto Freud dizia q o supereu / ideal do eu possui 2 facetas – a positiva, como referência evolutiva, e a negativa, de exigência tirânica -, Daniel Kupermann prefere pensar o supereu apenas como função negativa e opressora, separando-o do ideal do eu, tendo este a positiva função de referencial expansivo. Considero as duas interpretações bastante próximas, porém a de Kupermann me parece mais interessante psicanaliticamente. No filme, o protagonista fica sem espaço diante de seu alter ego desde o início, portanto este esmagamento poderia ser considerado uma projeção de um supereu implacável, mórbido.

A estética lúgubre de “O Duplo” e de “O Processo”, assim como de boa parte dos filmes de Ingmar Bergman, explicita o peso constante e massacrante de uma Lei interna impossível de ser seguida, auditada e punida eternamente através de um sentimento de culpa muitas vezes só dissolvido pelo humor ou pela morte. Ou por um processo de elaboração em sessões de análise ou através da arte.

Por fim, o psicanalista Masud Khan utiliza o conceito de “duplo” (já apresentado por Freud na obra-prima “O Estranho”), como questão clínica observada em muitos de seus analisandos. Ele percebia q era comum q as pessoas chegassem à análise demandando q suas facetas desagradáveis fossem exorcizadas, a fim de q a parte “mais interessante” ou “bem sucedida” prevalecesse com exclusividade. Na contramão desta expectativa, Masud trabalha a coexistência de todas as facetas subjetivas, num paradoxo includente q venha a permitir uma espécie de diálogo entre essas partes, articulando as diferenças sem q uma suprima a outra.

A coexistência em paradoxo de nossas diferentes facetas subjetivas, portanto, seria a única condição demasiadamente humana possível, ainda q dificilmente caiba numa lógica de vitrine “Fakebook” cor de rosa..

Travessias do desamparo (“Livre”, “Na Natureza Selvagem” e “Elena”)

Sem sombra de dúvida, “Elena” e “Na Natureza Selvagem” têm mais qualidade q “Livre”. Porém, este último possui vários méritos surpreendentes. Já valeria por suscitar a articulação c/ essas outras obras tão marcantes no cinema.
“Elena”, provavelmente o q vai mais fundo na questão da dor e da busca por voltar a respirar, é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Petra (a diretora) filma sua história c/ sua irmã Elena, q cometeu suicídio quando Petra ainda era menina. A beleza do amor entre as irmãs é expressa à perfeição, sem o menor traço de pieguice ou de “linguagem interna” não compreensível ao espectador. Petra transmite o atravessamento de sua dor pela perda da irmã, buscando alguma possível e humana sublimação (termo q Freud retirou c/ ótima simplicidade da química: “passagem do estado sólido para o gasoso”). A diretora vai à própria infância para arrancar visceralmente seus pedaços mortos. Sua autenticidade corajosamente ímpar impacta e derruba qualquer um q tenha disponibilidade ao sentir (assim como o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi cunhou seu “sentir com”, para falar de sua afetação com seus analisandos). Petra arrisca sua sanidade em busca de algo mais q sobreviver – lembrando o poético trecho “consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade”, da belíssima música de Renato Russo (“Sereníssima”). Atravessa seu fantasma através da arte, assim como tenta o pintor Gorky, personagem do filme “Ararat”, obra-prima de Atom Egoyan. Através da Psicanálise, através da Arte, o mergulho pelo trágico permite uma possibilidade árida, sem garantia alguma.
Em “Na Natureza Selvagem”, Sean Penn expressa magistralmente a busca de um jovem por se livrar da opressão superegoica introjetada pelos valores impostos por seus pais. Conquista o direito a estudar em Harvard (sonho/exigência de seus pais), queima carro e dinheiro – prêmios q eles lhe dão -, e parte para ficar algum tempo no Alasca, totalmente sozinho. Conhece algumas pessoas extremamente interessantes e sensíveis ao longo do percurso, porém nunca se disponibiliza a mais q um “flerte”, pois está fechado em sua reta intenção. O q ele não percebe é q sempre levamos o trágico na mochila, pois não há apagamento possível das memórias afetivas; as milhas de distância podem no máximo ser um paliativo interessante enquanto não é possível enfrentar o fantasma, cortejar a insanidade q Petra desperta de e em Elena, no outro filme. A onipotência/arrogância dos pais do garoto o acompanha ao Alasca, escondida, até ressurgir em sua morte, quando ele acha q pode sobreviver no gélido deserto com apenas um livrinho de plantas comestíveis. Ousado como gente grande, ingênuo como um menininho q foge p/ a casa de árvore no quintal. O “retorno do recalcado”, como nos diz Freud, é implacável, inexorável.
Enfim, voltando ao filme “Livre”, a personagem de Reese Witherspoon busca uma andança de 3 meses numa severa trilha, deserto e neve incluídos. Durante seu percurso, visita sua história c/ a mãe, recentemente morta de um câncer súbito. “Corteja” seus tempos de drogadição e promiscuidade (obviamente sem moralismos aqui), e seus episódios de raiva da mãe, por esta ter escolhido um marido alcoólatra e violento. Machuca seu corpo fisicamente na trilha, como tantas vezes vi pessoas cortando seus pulsos para tentar expurgar suas dores emocionais. Das drogas, passando pela promiscuidade, até o corpo ferido na trilha, a protagonista percorre a “travessia de seu fantasma” (termo bem colocado por Lacan), tentando rasgar sem arrebentar. Afinal, pergunta-se: “Nunca me redimirei?”, “Ou já me redimi?”, “Errei ao me machucar?”, “Ou precisei disto para chegar noutro lugar?”
Portanto, “Livre” merece todo o crédito pelo uso apenas comedido dos clichês hollywoodianos, por alguns questionamentos profundos e por evocar outros filmes de tamanha sensibilidade.