Abrir o Peito à Força (“O Cidadão Ilustre”)

A obra-prima “O Cidadão Ilustre” é o melhor filme de 2017. Os diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat (dos excelentes e igualmente sátiros “Querida Vou Comprar Cigarros e Já Volto” e “O Homem ao Lado”) realizaram com maestria um filme impecável, ao conseguir articular comédia sofisticada, escracho, drama, suspense, e ainda um leve toque de surrealismo. Joia rara, já q até mesmo grandes diretores escorregaram ao tentar incluir 2 estilos diferentes de narrativa, como Woody Allen em “Match Point” e Almodóvar em “Má Educação”.

Vamos às questões de “O Cidadão Ilustre”. O protagonista, vivido pelo brilhante Oscar Martinez (de “Ninho Vazio” e “Relatos Selvagens”) – em atuação impressionante, digna de todos os prêmios do ano -, vive um escritor q acaba de ser laureado com o Nobel de Literatura. No discurso de premiação, afirma q a popularidade de um artista representa o início de seu declínio. A plateia, q incluía a rainha da Suécia, fica perplexa. A partir daí, o universo da literatura reage cancelando inúmeras homenagens e palestras, em revolta a seu tom ofensivo.

Este momento inicia um período de isolamento radical, e vazio criativo. Daniel (nome do personagem) não lê, não escreve, não namora, não trepa. Como me disse certa vez uma pessoa querida, constrói um “eremitério”, q dura 5 anos. Num certo dia, ouvia sua secretária ler convites para palestras e homenagens. Recusava-as todas, com ares de tédio pedante. Uma delas chamou sua atenção, por ser uma homenagem em sua cidade natal, Salas, na Argentina. Inicialmente rejeita, lembrando tê-la deixado há 40 anos para viver em Barcelona.

Estranhamente muda de ideia, dando início a toda a trama. Saindo do aeroporto na Argentina, é recebido por um motorista caricato, num carro caindo aos pedaços. Enguiçam numa estrada erma, passando a noite no relento. O único jeito de se aquecerem é queimar páginas de seu livro prêmio Nobel. O motorista chega a rasgar uma das páginas para limpar a bunda, na falta de papel higiênico.

Chegando enfim à cidade, um carro dos bombeiros o espera, para desfilarem a céu aberto, com uma gordinha miss da cidade. Daniel observa tudo ao seu redor com seu olhar crítico, registrando cada micro absurdo em silêncio. Enquanto o carro passa, não há multidão a aplaudir nas ruas, apenas um casal, olhando.

Em sua primeira homenagem e palestra, sala lotada e papeizinhos brilhosos jogados pro alto. Daniel segue com seu cinismo e ironia silenciosos. O prefeito ao lado, rentabilizando através.

A partir daí, o filme apresenta uma série de encontros estranhos do protagonista: um amigo de infância, a namorada da adolescência (hoje esposa do tal amigo). Daniel caminha pelas ruas, à busca de nada; nem flanância, nem qualquer busca. Um ou outro o segue, sem arriscar aproximação. Aos poucos, as solicitações passam a irritar sua assepsia emocional.

Após trepar com uma incauta, dar um “selinho” em sua ex, votar num concurso de pinturas, jantar com seu amigo, inicia-se seu novo ocaso. Daniel passa a receber ameaças ostensivas contra sua integridade física.

A cidade de Salas se explicita a seu cidadão mais ilustre: o mau pintor, seu antigo “amigo”, todos apresentam sua ferocidade tacanha, como nos clássicos “Manderlay” e “Dogville”, de Lars Von Trier. Os caninos saem do armário.

Daniel começa, enfim, a assumir sua agressividade pedante: diz q não é uma “ONG” (com precisão cirúrgica) a um pai dum deficiente pedindo uma nova cadeira de rodas de 10 mil dólares, além de outros atos de “sincerocídio”.

Finalmente, nosso protagonista consegue compreender e aquilatar o perigo de vida a q está submetido… Tenta fugir da cidade (sugestão de sua ex). No clímax do filme, Daniel é morto, e sobrevive.

Resta a discussão: foi tudo ficção ou realidade?? Daniel, já de volta à Espanha – agora aceitando ser fotografado pela imprensa -, recebe uma homenagem por seu novo livro (contando a história de sua ida a Salas). Um dos jornalistas pergunta se o tiro no peito do protagonista tinha realmente ocorrido, se o livro é literalmente autobiográfico ou não, ao q ele responde: “Interprete como quiser…” – mostrando uma cicatriz no próprio peito.

A “travessia do fantasma” (Lacan) do Cidadão Ilustre passava por um reencontro com seus horrores mais intensos, dos quais não podemos fugir. Ele dizia, no início do filme, q a única coisa q tinha feito na vida era sair de Salas. “Vou me encontrar longe do meu lugar” (Milton Nascimento). Frequentemente escuto, dentro e fora do consultório, pessoas repetindo a seguinte fala: “Meu sonho é morar fora.” Infelizmente, este lugar – fora – não existe. Não há fuga de si, não há apelação ou desvio de nossa rota fantasmática, “não há álibi para a existência” (Mikhail Bakhtin). Portanto, como dizia Freud, à negação de nossos desejos secretos responde o “retorno do recalcado”. Como nos filmes de horror, o fantasma sempre volta; ainda q a passos lentos, sempre nos alcançará.

Apesar do protagonista manter até o fim sua postura pedante, ele consegue transpassar sua “capa protetora”, a película q o impede de sentir, de tocar o mundo. Seu peito é rasgado à força, na agonística busca de se libertar da asfixia de suas próprias ideias obsessivas, de seu purismo intelectual, sua superioridade arrogante, q o impediam de acessar minimamente sua humanidade.

A volta à sua cidade natal destrói aos poucos qualquer arremedo de acordo de distância de si. Daniel, enfim, perde sua “virgindade” e ascende à própria humanidade, rasgando qualquer blindagem q o protegesse da vida. “Abrir o peito à força numa procura” é uma viagem sem cinto de segurança, sem apelações. Homenagem à música de Milton Nascimento (“Caçador de Mim”), eternamente tocante.

Pedofilia, aberração em “Una”?

Georges Bataille, em “O Erotismo” (um dos 5 melhores livros q li na vida!), dizia q a cada momento da cultura a sociedade elege uma “figura dilacerante”, uma aberração, q representaria o ápice da excrescência humana, o q nos forçaria a repelir inevitavelmente, uma repulsa urgente, exigência pulsional (Freud) necessária à nossa preservação subjetiva. “Erotismo”, para Bataille, numa de suas acepções, significa “a relação de atração ou repulsa inevitável com algum objeto”. A sociedade, portanto, sempre criará os “monstros da vez”, os párias unânimes, capazes de enojar multidões, instigando ódio, distância ou, no limite, linchamento.

No mito de Satã (muito bem comentado num texto de Arnaldo Chuster), bem pr’além de qualquer religiosidade, Lúcifer (anjo da luz, dileto de Deus) seria expulso do paraíso por excesso de lucidez, “caindo do céu”, perdendo a “graça divina”, caindo em “desgraça”, fadado à escuridão. Lúcifer “cai em si”. Proponho, a partir daí, uma articulação: nossa cultura acostumou-se ao ato falho de dizer q “sofreu uma desilusão”. Do q o humano sofre? De “desilusão” ou de ilusão??? Nosso desamparo fundamental (Freud) convida a buscarmos sempre um cobertor amigo, um substituto por vezes caricato do útero materno perdido. Somos tementes a Deus, a Freud, aos pais, a uma posição política, ou a uma relação amorosa. Sofremos, portanto, de uma grande e crônica ilusão.

No entanto, por conta de nossa condição inevitável de ambivalência emocional, vacilamos. O paradoxo nos salva da morte no útero, daí duvidamos. Alguma lucidez recalcada provoca o retorno fundamental do Lúcifer de nossas transgressões. Sentimos uma atração incômoda pelo proibido, pelo abjeto, pelo sujo. Apedrejamos e perdoamos, não pela suposta soberba de um abnegado perdão, vendido por algumas religiões; fazemos este duplo movimento, contradição pura, pq internamente necessitamos, como uma “nova ação psíquica” (Freud), uma bálsamo oxigenante diante de uma asfixia de um regime do impossível do grande Outro (Lacan). A fúria de nossos desejos e ódios se expressa no nojo seguido de complacência, no horror seguido de tesão. Podem encontrar isto em Freud e Bataille, ou em Buñuel e Pasolini, Deus e Lúcifer.

Nos dias atuais, essa figura abjeta, capaz de enojar a todos, seria o pedófilo. Unanimidade, este ser consegue ser massacrado e ultrajado até nos presídios. É o estupro consentido, a justiça reconquistada, o ódio acalmado. Como no brilhante filme “Sexo por Compaixão”, apedrejamos a “Geni” q nos causa um tesão estranho (Freud), um incômodo q precisamos rechaçar, recalcar, pois seu efeito nos é dilacerante (Bataille), insuportável. Maria Rita Kehl propõe q o sujeito q se diz “de caráter ilibado” não passa de um neurótico ressentido, negando a cisão fundante do humano, fadado ao eterno conflito psíquico de q Freud tanto nos falou. Portanto, a despeito do nojo/ódio, precisamos buscar alguma conciliação, ainda q parcial, com o horror da pedofilia.

Noutros momentos históricos, já odiamos os negros, os judeus ou os homossexuais. Obviamente, aqui não cabe compará-los, ou equipará-los, mas apenas questionar este nojo maniqueísta q nos faz ter tesão numa roupa de colegial do sex shop, logo após apedrejarmos a pedofilia. Não há aqui, em absoluto, nenhuma proposição de legalização do ato pedófilo. Apenas uma aproximação de mais essa aberração, demasiadamente humana.

No filme “Una”, o excelente diretor australiano Benedict Andrews nos apresenta uma “pedofilia consentida”, o q por si só já desorganiza nossas estruturas prévias. Com isto vai muito mais além do bom e superestimado “A Caça”, já q este apenas nos apresenta o desconforto da facilidade com q podemos acatar e criar um ser abjeto, a partir de sutilezas imaginárias. Como dizia Freud, se tudo q minhas histéricas dizem for verdade, metade dos pais da Europa é pedófila…

A discussão em “Una” é revolucionária, muito à frente do nosso tempo. Antimaniqueísta ao extremo, aqui não há vítimas ou vilões, mocinhos ou bandidos. Também não há complacência, ou negação de danos emocionais à menina. O filme é para além. O diretor insiste em pesquisar as emoções dos personagens, à parte do contexto cultural, sem no entanto negá-lo, posto q o pedófilo é preso.

Uma das questões fundamentais abordadas é a interrupção do curso da relação amorosa entre a menina e o adulto. A menina, agora mulher, quer acertar as contas com sua própria história, abalroada pelas leis da família e do Estado. Vai ao encontro do homem q amou, ou ama, reivindicando a legitimidade de seu sentir, já q agora a sociedade não constitui impedimentos, posto q ambos são, em idade, igualmente adultos.

A história de amor desses dois humanos precisava de um desenrolar, de um desfecho, precisava da beleza de uma desilusão, sem nenhuma mediação social. A menina precisava “resolver” seu tesão e sua raiva, seu amor e sua ilusão. Para tal, prepara-se, maquiagem em riste, exigindo reconhecimento de q agora é uma mulher.

“Una” é a obra-prima à frente do nosso tempo, sobre a ultimização (Fernando Pessoa) de um amor, para além dos Montecchios e Capuletos (Shakespeare) de nossa sociedade atual, q somos nós mesmos. Suportá-lo nos reinventa e desmascara, nos disponibiliza a outras aberrações, novos ódios e repugnâncias. Q venham os próximos, quem sabe os terroristas…

A Magia de Star Wars: Édipo e Antimaniqueísmo

Por que a saga Star Wars conquistou tamanha longevidade, apaixonando diferentes gerações?

Independentemente de eu ser também um grande fã, e de muito ser dito ao redor do mundo sobre tal história, penso q vale aqui um pequeno comentário, sem pretensão de outros aprofundamentos possíveis.

A estruturação de Guerra nas Estrelas, como muitos pensam, segue a lógica da “jornada do herói” (questão estudada e eternizada pelo antropólogo Joseph Campbell). A articulação com os arquétipos de Jung, assim como o Complexo de Édipo (um dos pontos de partida do raciocínio freudiano), permeia toda esta saga, marco da história do cinema.

No entanto, praticamente todas as grandes aventuras transformadas em série para o cinema poderiam ser enquadradas nesta pequena definição supracitada (como a excelente “Senhor dos Anéis”, por exemplo). Qual seria então o diferencial de Star Wars?

Em praticamente todos os filmes de aventura, o herói e o vilão são bastante marcados, maniqueisticamente. Além disso, as jornadas dos heróis incluem o momento do vacilo, de quase colocar tudo a perder (“vendendo fácil o q não tinha preço”, como diria Renato Russo), seguido por uma virada, geralmente com alguma ajuda de um coadjuvante.

Claro q há maniqueísmo tb em Star Wars, além de vários destes elementos típicos. Porém, aqui o vilão principal (Darth Vader) era a grande esperança do “lado bom da Força”, um Skywalker. Cooptado pelo imperador, torna-se a maior arma do “lado negro”. Através do ódio por ter perdido sua esposa, Anakin não é mais capaz de sustentar sua humanidade, sendo transformado numa máquina de potência inigualável. A manipulação através da fúria é uma arma comum em estratégias de guerra (como no atual exemplo dos homens-bomba, dentre tantos).

O enfrentamento contra o mais forte tb é algo comum neste tipo de história, como Davi contra Golias. No entanto, aqui é filho contra pai, e filho recooptando o pai. Ou seja, a lógica “mocinho mata o bandido no final” é subvertida, pois a luta de Darth Vader contra o filho funciona como uma “Travessia do Fantasma” (Lacan), onde o pai se reaproxima da dor de ter perdido a mulher através do embate. Enquanto isso, o filho enfrenta o fantasma de sua “negra” origem. São, portanto, dois enfrentamentos próprios, simultâneos, subvertendo a perspectiva superficial de quem vencerá a luta.

Darth Vader já sabia q tinha 2 filhos gêmeos, posto q tinha uma sensibilidade Jedi diferenciada. Porém, a existência dos filhos era psiquicamente cindida, recalcada, até o momento do embate, do atravessamento.Sua fúria era melancólica, e o “lado negro” representaria sua vida “à sombra do objeto perdido” (Freud, em “Luto e Melancolia”).

Pais e filhos “brincam de brigar”, quando vão ao cinema assistir a “Star Wars”. Brincam com a transmissão do saber, com o ciclo de vida e morte, com o desejo de um cooptar o outro, e serem um só. O ambicioso e raro projeto de um aprender com o outro, e o conflito geracional dar espaço a uma dupla transmissão, onde as idades podem ser fortemente subvertidas, é suscitado através da suposta “historinha de homens infantis brigando de espadas”. A metáfora salva o ser humano da superficialidade interpretativa…

Além de tudo isso, há o fato de que os heróis dessa “Guerra nas Estrelas” são bastante dissipados, não havendo portanto um “poderoso chefão”. Luke não chega nem perto de um macho-alfa, e nem namorada tem. Grande parte das mortes efetuadas pelo vilão Darth Vader são por “sufocar as mentes fracas”, sem necessidade de nenhuma violência física para escancarar o q realmente mata numa sociedade. Ao final, o imperador cai no abismo de sua arrogância.

Pq a saga “Star Wars” tende a se eternizar? Muito provavelmente por conta de nosso inelutável conflito interno, por conta da ambivalência de nossos desejos, da tensão constante com nossa fúria interna, da nossa crônica tendência a eleger vilões e mocinhos, e depois encarar nosso arrependimento (no melhor dos casos…). “Guerra nas Estrelas” brinca com nosso maniqueísmo, com nosso tragicômico paradoxo subjetivo. Que os sabres de luz possam simbolizar as disputas fálicas não apenas entre homens, mas também entre homens e mulheres, ou entre mulheres. Que a força da metáfora esteja conosco.

Sorrentino, O Contador de Histórias (“A Grande Beleza”, “A Juventude” e “Aqui é o Meu Lugar”)

O diretor e roteirista italiano Paolo Sorrentino, por sua filmografia, já merece ser reconhecido como um dos mais importantes da atualidade. Seu estilo de fazer cinema é extremamente marcante – esteticamente ímpar, irônico, pretensioso, consistente, melancólico.
Sua forma de contar histórias transcende os roteiros, q acabam como composição coadjuvante. Em “Aqui é o meu Lugar” (2011), Sean Penn (brilhante no complexo papel) vive um roqueiro andrógino decadente. Seu olhar transborda ironia, sublinhando sutilmente os absurdos do cotidiano. Numa cena, o protagonista e sua mulher compartilham o espelho do banheiro, enquanto ambos se maquiam; noutro momento, Penn se mete numa conversa de mulheres sobre batom num elevador, sugerindo a marca q ele usa, por fixar melhor. Ao fundo, uma trilha sonora maravilhosa conduz o filme à perfeição.
Em “A Grande Beleza” (2013), Sorrentino atinge seu ápice, além de ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro (o único “braço” sério do Oscar). O protagonista vive um encontro inesquecivelmente belo aos 19 anos, e fica deslumbrado. A partir daí, passa a vida inteira buscando algo q o fizesse sentir “aquilo” novamente. Frequenta festas da alta sociedade em Roma, exposições de arte contemporânea, belas mulheres, discussões sobre literatura, conversa com grandes líderes religiosos. Sarcástico, impiedosamente mordaz, dizima o vazio humano com a precisão de um atirador de elite. Em sua melancólica caminhada, já com 65 anos, só esbarra em alguma surpresa em 2 das cenas finais. A primeira ocorre quando um ilusionista faz uma girafa desaparecer, e lhe diz: “É tudo apenas um truque.”. A outra cena acontece quando o protagonista visita o homem q casou com a mulher (já falecida) daquela experiência inesquecível de sua juventude, já casado com uma nova esposa, nada exuberante esteticamente como a primeira. O protagonista acompanha alguns breves momentos extremamente cotidianos do casal (passar roupa, ver novela). Neste instante, ele parece enfim perceber novamente a grande beleza. Só q agora já está emocionalmente necrosado por sua ironia melancólica.
Por último, em “A Juventude” (q soa como uma bilogia com o filme anterior, tomando o tema da melancolia como fio narrativo) Michael Caine vive um maestro aposentado, “à sombra do objeto perdido” (Freud, em “Luto e Melancolia”) – sua esposa falecida. O diretor cria um spa bucólico onde milionários esbarram suas errâncias, à busca de algum norte inspirador, algum oxigênio, um rompante salvador… Idades avançadas ou ideias envelhecidas, potências humanas perecem com seus sintomas neuróticos, numa paz mórbida e sufocada no próprio sarcasmo.
Neste filme, os ícones de sucesso de plástico – diretor de cinema consagrado, ator de franquia famosa, uma bela mulher – são confrontados com a simplicidade de uma criança ou a exuberância de uma Miss Universo. O aniversário do filho da rainha da Inglaterra emblematiza ao máximo o absurdo de nossa cultura. Ao final, Sorrentino submete o maestro protagonista aos caprichos do príncipe, colocando-o como regente em seu festejo. Demasiadamente humano, diria Nietzsche.
Por tudo isso, Paolo Sorrentino conquistou a consistente liberdade de poder contar praticamente qualquer história, pois sua narrativa, estética e questionamento mordaz sobram como mais do q suficientes para compor uma obra-prima. Até hoje, seu tema-norteador tem sido a melancolia, porém a partir de agora pode me contar o q quiser. Eu fico aqui, sonhando acordado.

Psicanálise, “A Grande Aposta”

O q é análise? É possível responder a esta pergunta?

A primeira resposta seria não, pois se análise é um ato singular, pessoal e intransferível, não há generalização possível q organize suas categorias de funcionamento universalmente.

Uma segunda resposta possível, tão verdadeira quanto a primeira, precisaria reunir especificidades do processo psicanalítico q estivessem supostamente presentes na análise de qualquer um. Idealmente, é claro, doutra forma nenhuma teoria seria possível.

Poderíamos, talvez, começar quebrando um lugar-comum sobre psicanálise, q nos sirva como exemplo suficiente por hora. “Análise é algo a longo prazo. Coisa pra muitos anos…” Na realidade, análise não possui um pressuposto ou tendência cronológica. Tudo depende dos projetos – conscientes e inconscientes – q emanarem do encontro analista-analisando, tanto em termos de quantidade quanto em profundidade. O efeito dessa coisa chamada encontro (ou “Terceiro”, como nomeou o psicanalista Thomas Ogden, um de meus preferidos) desdobra-se também no tempo, q tem Chronos como uma de suas acepções. Isto é, a partir da singularidade do par analista-analisando, haverá um desdobramento da análise numa certa temporalidade, através de alguns específicos caminhos e não outros, percorrendo determinadas emoções e atingindo transformações particulares. O “prazo” de duração da análise, portanto, está no meio desta enorme malha de possibilidades.

Partindo para uma outra característica bastante própria a uma análise, encontramos a ideia de aposta. Optarei aqui por tomar a ideia de aposta num sentido bem forte da palavra. Nenhum dos significados q encontrei nos dicionários se aproxima o suficiente do q aqui quero propor. Penso aposta, inicialmente, como Ferenczi (psicanalista húngaro, provavelmente o mais importante de todos q conheci), quando este diz q “sábio é o ser que adivinha”. Adivinhação, aqui, nada tem a ver com previsão de futuro. A ideia de Ferenczi é q qualquer pessoa tem condições de acompanhar algum acontecimento tão íntima e atentamente q poderia então ad-vinhar algo do q está por vir. Quando algo se dá, traz consigo inúmeros “penduricalhos” q configuram os múltiplos desdobramentos em potencial. Portanto, quando algo vem, outras coisas ad-vêm juntamente. O psicanalista, como qualquer outra pessoa, pode propor certos usos possíveis destas tendências, desde q, como tudo, com grandes cuidados éticos.

Conversando com um analisando economista, há uns meses atrás, falávamos da palavra cenário, cotidianamente utilizada em seu trabalho. Traçávamos vários cenários possíveis, e daí organizávamos e criávamos caminhos de trabalho analítico juntos. Este seria apenas um exemplo de usos da aposta, no caso a partir de cenários possíveis (assim como as “condições de possibilidade” do filósofo Kant).

Gostaria, finalmente, de propor uma articulação com “A Grande Aposta”, indicado ao Oscar de Melhor Filme deste ano. Surpreendentemente, apesar de bastante hollywoodiano, ele nos traz uma ótima discussão. O personagem de Christian Bale (um dos melhores atores da atualidade) antecipa uma crise inédita no mercado imobiliário. Ao invés de focar no falo deste personagem e dos poucos q compram sua ideia – clássico recurso no cinema comercial -, o diretor opta por denunciar a mediocridade não apenas dos americanos, mas de praticamente todos os “analistas financeiros” do mundo. Ainda q o tema “ações/imóveis” seja sua matéria de estudo e trabalho, e seu ganha-pão, todos pensam em manada (como retratavam insistentemente Buñuel, Pasolini e outros tantos há algumas décadas).

A ênfase, portanto, está na extrema impossibilidade de fazerem a simples pergunta: “Será?”. Os raros q a fazem, claro, enriquecem financeiramente (já eram mais ricos noutros sentidos). Além disso, o personagem de Bale (um tantinho estereotipado como louco/excêntrico) se questiona: “Quem está errado nunca sabe, e nem o porquê de estar.” Ele sabia q pelos argumentos de massa dos q acreditam no “em time que está ganhando não se mexe”, ele não estava errado. Porém, poderia haver alguma variável desconhecida (como alguma fraude no sistema, não cogitada por ele).

Pior, se ele estivesse errado seria o triunfo da mediocridade, e nunca um fator específico não mensurado (como no final do filme “A Promessa”, com Jack Nicholson). Quantas vezes conseguimos apostar no “não consagrado”? O q há de tão sagrado nas apostas viciadas? Poderíamos conjeturar q um rapaz de pernas tortas como Garrincha marcaria seu nome exatamente como jogador de futebol, por exemplo? Quantos filmes não consagrados por Hollywood nos arriscamos a assistir? Se alguém procura uma análise estando muito mal, poderíamos vislumbrar algo mais do q apenas a melhora daquele mal-estar?

Tendo em vista todas essas questões, proponho pensarmos na especificidade do trabalho de análise como uma Grande Aposta. Tomarei “aposta” no sentido de olhar além do sagrado, do totem q nos entorpece os sentidos (ler o texto “Totem e Tabu” de Freud). Este posicionamento já no início de uma análise antecipa algum importante esvaziamento do Grande Outro* q impede a liberdade do sujeito.

A partir do potencial apresentado inconscientemente pelo próprio analisando, o analista já começa a trabalhar dentro desta Grande Aposta. Enquanto isso, o analisando segue inebriado pela fragrância do vislumbre de q algo ali parece fazer sentido. Nada mais, apenas isso. Claro q não estou me atendo aos analisandos q creem cegamente em qualquer coisa vinda deste analista Suposto Saber.

Portanto, analista e analisando entram numa trilha “ao som” do poeta Maiakovski: “Eu caminho no escuro, pois cogito a luz”, num mergulho de Lúcifer, abandonando a luz divina supostamente pré-assegurada, doa o q doer, como diria Clarice Lispector ou a personagem do filme “Livre”. Sem o glamour de qualquer coisa tipo “Deixa a vida me levar”, sem a suposta garantia do saber prévio do analista, sem Freud nem Lacan como seguro-fiança, só resta a vertigem. Ética e dolorida. E sem final feliz, pois ganhando umas e perdendo outras, “no final a banca sempre leva”, como diz o diabo em “Desconstruindo Harry”, a obra-prima máxima de Woody Allen.

 

 

* Grande Outro: termo criado por Jacques Lacan para nomear o cenário singular q cada um de nós carrega como fantasma viciante. O q nos faz repetir, repetir, até, no melhor dos casos, ousar alguma transformação.

 

Petra Costa, A Melhor Diretora Brasileira da Atualidade (“Elena” e “Olmo e a Gaivota”)

Estrear na direção com uma obra-prima (“Elena”) já é algo extremamente raro (o último foi Xavier Dolan, com “Eu Matei Minha Mãe”); realizar o segundo filme (“Olmo e a Gaivota”) com excelência já consolida o lugar de Petra Costa como uma das grandes diretoras do cinema mundial, e como a melhor no cenário do Brasil atualmente.

No primeiro, a diretora atravessa sua própria história, transmitindo a construção do amor entre ela e sua irmã, o suicídio desta, e a “travessia do fantasma” (Lacan) de Petra, elaborando sua tragédia “a sangue e osso”, sem trejeitos, pieguices, distrações ou disfarces. “Elena” é um filme de uma vida inteira, daqueles q não se faz mais de um. Acima deste patamar, apenas os maiores de todos os tempos: Wim Wenders, Woody Allen, Chaplin, Buñuel, Truffaut, Sergio Leone, Polanski, Bertolucci, Tarantino, etc.

A partir de “Olmo e a Gaivota”, Petra Costa ratifica sua sensibilidade fora de qualquer curva, dirimindo qualquer dúvida ceticista sobre sua capacidade de explicitar além de sua vivência direta. Ao acompanhar as idiossincrasias subjetivas de um casal do início ao fim de uma gravidez delicada, edita a la “livre associação” (Freud) a densidade das situações conflitivas (a perda do papel principal na peça, pela protagonista do filme; os meses proibida de sair de casa), vista pela perspectiva de cada um. Além disso, apresenta as questões sem um direcionamento prévio, ou seja, não busca soluções, já q os impasses humanos não necessariamente tendem a alguma coisa. São, portanto, como verbos intransitivos: não nascem atrelados a alguma solução. Apenas existem, e sempre existirão.

A presença de um senso de humor q não banaliza a dor de cada um, e nem “resolve” nenhuma polêmica, colore o cotidiano do casal (ambos atores de teatro) sem nenhum glamour caricato.

A continuidade do casamento, ou sua dissolução, nunca se apresentam como questão central. Assim, Petra Costa me remete ao poeta Manoel de Barros, com sua frase ímpar: “Pássaros me outonam.” A poesia de Manoel desconstrói a superfície de contato entre “pássaro” e “outono”, elevando a experiência sensível a uma amplitude quase infinita. Petra, em “Olmo e a Gaivota”, verbaliza de forma intransitiva o “ser casal” e o “ser grávido”, muito pr’além de qualquer encaminhamento sob encomenda.

Por toda esta sensibilidade nos dois filmes, e a intensidade das sutilezas subjetivas de seus “personagens” (ao criar um documentário, a realidade se torna versão, e as pessoas se tornam personagens), Petra Costa já é a diretora a ser vista, independentemente do q venha a realizar em cinema.

Declínio e Beleza do Amor em “Love” e “Lua de Fel”

No polêmico filme “Love”, exibido em Cannes-2015, o diretor Gaspar Noé (do excelente e intenso “Irreversível”) apresenta cenas de sexo explícito, longas e variadas. Ainda fico extremamente impressionado como o sexo segue sendo um assunto bombástico, inevitavelmente. Q seja mobilizante, ok. Mas sempre polêmico e causando alvoroço já acho over – tanto pros q elogiam o filme-sensação da vez, quanto pros q criticam.

Desde os tempos da obra-prima “Último Tango em Paris” (1972), passando pelo fraco e superestimado “Império dos Sentidos” (1976), pelo muito bom “Calígula” (1979), até os excelentes “Ninfomaníaca” e “Azul é a Cor Mais Quente” (ambos de 2013), e agora o ótimo “Love” (2015), o sexo ainda segue chocando até a plateias não moralistas. Pq o sexo não pode ser apenas um elemento especial ou interessante, mas não o centro cataclísmico do nosso impacto num filme? Se o sexo roubar a cena AUTOMATICAMENTE, nossa subjetividade, por vários motivos, terá se tornado automática. No mínimo, um desperdício de potencial. A sexualidade pode ser poética, inspiradora, eloquente, lasciva, criativa, suave, pulsante, etc. Mas se for “automática”, neste sentido aqui proposto, aí soa triste e pobre.

Retomando “Love” como um todo, sem diminuir nem aumentar a importância da sexualidade, mas apenas devolvendo seu lugar de um dos elementos relevantes neste filme, me parece q o tema forte é a ascensão e o declínio do amor, em tons agudos. O diretor estuda detalhadamente a importância de sexo, amor e fidelidade para cada personagem. E o faz de forma artística, talvez com alguns micro excessos, nada grave.

Somos levados a acompanhar as diferenças de gênero durante os dilemas dos protagonistas na sustentabilidade do amor. As promessas sinceras, de validade curta. O brilho no olhar, agonisticamente em queda livre e lenta. O desespero dos amantes, q fazem de TUDO para tentar segurar o amor, em seu irremediável declínio. Se é amor ou paixão o q fenece, escolho não entrar nesta seara. Acho q é amor sim, neste filme, a título de nota apenas.

A referência mais direta de “Love” é o clássico “Lua de Fel” (Polanski, 1992). As desesperadas artimanhas sexuais de um casal desempregado, extasiado ante à luxúria e ao amor, desempenham igual papel nas duas obras. A tragédia final é o destino óbvio de uma intensidade purista q exige sustentação sem concessões, numa rota de sempre mais além, custe o q custar. E custa. Não é q os protagonistas não tentem uma “dobra sobre si” (como propõe o filósofo Deleuze), porém não sabem como procurar, nem onde. Certamente não seria indo às compras num “sex shop de gente”, tentando ménage, orgia, ou um travesti. O resultado: ofensas, ódio, e as lágrimas da melancolia, “à sombra do amor perdido” (parafraseando Freud, em “Luto e Melancolia”).

A violência, mais leve em “Love” do q em “Lua de Fel” ou em “Irreversível” (também sobre um amor não sustentado, ainda q numa tragédia mais pontual), parece até uma “dor q não dói”, por ser uma violência-substituto de uma dor muito mais insuportável. Lembro dos anos em q trabalhei em clínica psiquiátrica, onde muitas vezes ouvi pessoas dizendo q cortavam os pulsos “para atenuar a dor da alma”, ou a “dor de existir”. Daí, portanto, a morte – concreta ou não – parece ser talvez um descanso impotente, uma crônica de uma morte anunciada, citando Gabriel Garcia Márquez.

A discussão última fica na questão apresentada ao fim de “Lua de Fel”, quando Peter Coyote (paralítico) diz à sua esposa: “Nós fomos longe demais, baby.”, logo antes de matá-la e a si. É essa a questão? Ou é a outra frase, no mesmo filme: “Os casais deviam se separar no auge da paixão, e não esperar até o inevitável declínio.”?

Em “Réquiem para um Sonho” (2000) e em “Os Sonhadores” (2003), a discussão aponta para a prévia ingenuidade do sonho e dos sonhadores. Tragédia sempre anunciada. Em “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (2004), o roteiro aponta para o mito de Sísifo (discutido no livro de Albert Camus), onde estaríamos fadados a conduzir nossas paixões ladeira acima, mesmo sabedores da tragédia de q a pedra sempre cairá ladeira abaixo no fim.

Excesso, ingenuidade, condição da humanidade… Para onde aponta o declínio da beleza amorosa?

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Freud, Dostoiévski, Kafka/Welles e Masud Khan nos filmes “O Duplo” e “O Processo”

Tive uma grata surpresa ao assistir a “O Duplo”, baseado no romance homônimo de Dostoiévski. Adaptação muito interessante, fotografia de ótimo nível em tons cinza escuro. O protagonista começa perdendo seu lugar num metrô vazio para um estranho, q rapidamente vamos percebendo ser seu alter ego, versão proativa e super autoconfiante (oposição imaginária à sua realidade de inércia e apagamento).

Inicialmente, este “outro” personagem soa como um parceiro alvissareiro, estimulando seu crescimento na empresa onde trabalha. O ambiente profissional é surrealisticamente burocrático, lembrando “O Processo” (obra-prima de Kafka, adaptado ao cinema por Orson Welles) e “O Castelo” (também do escritor tcheco), cheio de “pequenos poderes” em forma de labirinto intransponível. Ao alter ego, no entanto, tudo é facilitado, as portas sempre se abrem, as pessoas sorriem e mostram reconhecimento por seus atos.

Portanto, este “outro” inicialmente faz a função de “ideal do eu” (conceito freudiano referente às nossas prospecções e expectativas subjetivas, para dizer de forma sucinta), apresentando um caminho de norteamento evolutivo. Aos poucos, esta alteridade toma a forma de supereu tirânico (Freud), massacrando o protagonista, empurrando-o a uma espécie de “zero absoluto”, metaforicamente um suicídio. Novamente, a analogia com o “Sr. K” de “O Processo” é direta. Melanie Klein, q deixou seu nome marcado na história da Psicanálise, falava da “posição esquizo-paranoide”, quando o sujeito teme um aniquilamento proveniente de paradeiro desconhecido, questão bastante patente na angústia do protagonista de “O Duplo”.

Enquanto Freud dizia q o supereu / ideal do eu possui 2 facetas – a positiva, como referência evolutiva, e a negativa, de exigência tirânica -, Daniel Kupermann prefere pensar o supereu apenas como função negativa e opressora, separando-o do ideal do eu, tendo este a positiva função de referencial expansivo. Considero as duas interpretações bastante próximas, porém a de Kupermann me parece mais interessante psicanaliticamente. No filme, o protagonista fica sem espaço diante de seu alter ego desde o início, portanto este esmagamento poderia ser considerado uma projeção de um supereu implacável, mórbido.

A estética lúgubre de “O Duplo” e de “O Processo”, assim como de boa parte dos filmes de Ingmar Bergman, explicita o peso constante e massacrante de uma Lei interna impossível de ser seguida, auditada e punida eternamente através de um sentimento de culpa muitas vezes só dissolvido pelo humor ou pela morte. Ou por um processo de elaboração em sessões de análise ou através da arte.

Por fim, o psicanalista Masud Khan utiliza o conceito de “duplo” (já apresentado por Freud na obra-prima “O Estranho”), como questão clínica observada em muitos de seus analisandos. Ele percebia q era comum q as pessoas chegassem à análise demandando q suas facetas desagradáveis fossem exorcizadas, a fim de q a parte “mais interessante” ou “bem sucedida” prevalecesse com exclusividade. Na contramão desta expectativa, Masud trabalha a coexistência de todas as facetas subjetivas, num paradoxo includente q venha a permitir uma espécie de diálogo entre essas partes, articulando as diferenças sem q uma suprima a outra.

A coexistência em paradoxo de nossas diferentes facetas subjetivas, portanto, seria a única condição demasiadamente humana possível, ainda q dificilmente caiba numa lógica de vitrine “Fakebook” cor de rosa..

“Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência”: a melancolia no brilhante cinema nórdico

Praticamente uma obra-prima, este filme sueco impressiona pela ousadia de propor um ensaio sobre cinema. Sua discursividade multifacetada dialoga com bastante proximidade com a trajetória do mestre Alain Resnais (“Ervas Daninhas”, “Hiroshima Mon Amour”, “O Ano Passado em Marienbad”). Sua forma descontinuada de apresentar questões impacta por estar quase sempre à medida de alfaiataria (à exceção de um tom acima de surrealismo no terço final).

Seus personagens carregam o peso da melancolia sem disfarces, realçada pela insistência de algumas cenas, pela precisão dos atores e pelo impressionante esmero do cinema nórdico em trazer sua discussão de forma radicalmente enxuta, sem apelações. Tragédia e humor negro caminham de forma desconcertante, bela e sem bagunça. A parte humorada lembra o excelente e refinado “O que Resta do Tempo”, do palestino Elia Suleiman.

O diretor sueco apresenta as cenas sem “distrações” em torno, como se escolhesse a ausência plena de “coadjuvações”. O vazio emocional de dois amigos vendedores de “entretenimento” (pequenos apetrechos de fazer rir) é enfatizado em seu cotidiano repetitivamente dramático, triste. A decadência e o desespero sem gritos expressam o fim das forças da vida destes dois amigos em falência. No entanto, só lhes resta insistir no vazio, pois em volta não há mais nada. Enquanto isso, o filme traz o paralelo de um pós-guerra devastador. A despeito do impossível, a dona de um bar vende doses de bebida por beijos nela, enfatizando a força de resistência humana, na mais bela cena do filme, ao som de uma música alegre e sem sombra de alienação.

Quando Freud escreveu o célebre texto “Luto e Melancolia” (equivocadamente interpretado como “luto ou melancolia”), postulou a emblemática frase de q o melancólico vive “à sombra do objeto perdido”, eternamente fadado a uma mórbida repetição. Aqui neste filme, os personagens insistem durante sua própria falência, num misto de força e desesperança includentes, a única realidade de ser humano. Ambivalentemente forte e fraco, desistente e insistente.

Parafraseando Nietzsche, demasiadamente humanos.

Travessias do desamparo (“Livre”, “Na Natureza Selvagem” e “Elena”)

Sem sombra de dúvida, “Elena” e “Na Natureza Selvagem” têm mais qualidade q “Livre”. Porém, este último possui vários méritos surpreendentes. Já valeria por suscitar a articulação c/ essas outras obras tão marcantes no cinema.
“Elena”, provavelmente o q vai mais fundo na questão da dor e da busca por voltar a respirar, é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Petra (a diretora) filma sua história c/ sua irmã Elena, q cometeu suicídio quando Petra ainda era menina. A beleza do amor entre as irmãs é expressa à perfeição, sem o menor traço de pieguice ou de “linguagem interna” não compreensível ao espectador. Petra transmite o atravessamento de sua dor pela perda da irmã, buscando alguma possível e humana sublimação (termo q Freud retirou c/ ótima simplicidade da química: “passagem do estado sólido para o gasoso”). A diretora vai à própria infância para arrancar visceralmente seus pedaços mortos. Sua autenticidade corajosamente ímpar impacta e derruba qualquer um q tenha disponibilidade ao sentir (assim como o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi cunhou seu “sentir com”, para falar de sua afetação com seus analisandos). Petra arrisca sua sanidade em busca de algo mais q sobreviver – lembrando o poético trecho “consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade”, da belíssima música de Renato Russo (“Sereníssima”). Atravessa seu fantasma através da arte, assim como tenta o pintor Gorky, personagem do filme “Ararat”, obra-prima de Atom Egoyan. Através da Psicanálise, através da Arte, o mergulho pelo trágico permite uma possibilidade árida, sem garantia alguma.
Em “Na Natureza Selvagem”, Sean Penn expressa magistralmente a busca de um jovem por se livrar da opressão superegoica introjetada pelos valores impostos por seus pais. Conquista o direito a estudar em Harvard (sonho/exigência de seus pais), queima carro e dinheiro – prêmios q eles lhe dão -, e parte para ficar algum tempo no Alasca, totalmente sozinho. Conhece algumas pessoas extremamente interessantes e sensíveis ao longo do percurso, porém nunca se disponibiliza a mais q um “flerte”, pois está fechado em sua reta intenção. O q ele não percebe é q sempre levamos o trágico na mochila, pois não há apagamento possível das memórias afetivas; as milhas de distância podem no máximo ser um paliativo interessante enquanto não é possível enfrentar o fantasma, cortejar a insanidade q Petra desperta de e em Elena, no outro filme. A onipotência/arrogância dos pais do garoto o acompanha ao Alasca, escondida, até ressurgir em sua morte, quando ele acha q pode sobreviver no gélido deserto com apenas um livrinho de plantas comestíveis. Ousado como gente grande, ingênuo como um menininho q foge p/ a casa de árvore no quintal. O “retorno do recalcado”, como nos diz Freud, é implacável, inexorável.
Enfim, voltando ao filme “Livre”, a personagem de Reese Witherspoon busca uma andança de 3 meses numa severa trilha, deserto e neve incluídos. Durante seu percurso, visita sua história c/ a mãe, recentemente morta de um câncer súbito. “Corteja” seus tempos de drogadição e promiscuidade (obviamente sem moralismos aqui), e seus episódios de raiva da mãe, por esta ter escolhido um marido alcoólatra e violento. Machuca seu corpo fisicamente na trilha, como tantas vezes vi pessoas cortando seus pulsos para tentar expurgar suas dores emocionais. Das drogas, passando pela promiscuidade, até o corpo ferido na trilha, a protagonista percorre a “travessia de seu fantasma” (termo bem colocado por Lacan), tentando rasgar sem arrebentar. Afinal, pergunta-se: “Nunca me redimirei?”, “Ou já me redimi?”, “Errei ao me machucar?”, “Ou precisei disto para chegar noutro lugar?”
Portanto, “Livre” merece todo o crédito pelo uso apenas comedido dos clichês hollywoodianos, por alguns questionamentos profundos e por evocar outros filmes de tamanha sensibilidade.