Só o Afeto Interessa (“Assunto de Família”)

Poucas vezes vemos no cinema um diretor conseguir ser totalmente preciso no q pretende transmitir, sem recorrer a panfletagens, ou a agressões retóricas ao sistema de pensamento oposto. O japonês Hirokazu Kore-Eda, em “Assunto de Família”, atingiu com plenitude este objetivo, com a eficácia de um atirador de elite. Refiro-me com isto à colocação do afeto como significante central no filme, como protagonista único.
Relembro a obra-prima máxima neste sentido, onde o fora-de-série Almodóvar contempla mais do q ninguém na História este intento, com o clássico “Fale com Ela”. Aqui, o enfermeiro “Benigno” sustenta a fé na recuperação de uma paciente em coma duradouro, cuidando de maneira indescritível ao olhar e à interpretação do senso comum. O “milagre” acontece através de um abuso sexual, demarcando a transgressão como uma decisão para além da suportabilidade social. Como disse certa vez uma pessoa muito querida, o transgressor passa a viver num eremitério (neologismo criado por ele mesmo), assumindo com isto todos os enormes custos desta decisão. Este eremita, portanto, morreu para o mundo. Não possui a esperança do retorno, não conta com a possibilidade de volta, portanto não se tornará música, como o “irmão do Henfil”, nem presidente, como José Mujica.
Aos transgressores aqui mencionados, apesar de “benignos”, só restará a morte, a prisão perpétua, o banimento social. Estarão “Presos do Lado de Fora”, como no poético livro da psicanalista Solal Rabinovitch sobre a Psicose. E eles sabem disso, como assume o personagem acusado de estupro na obra-prima “O Processo do Desejo”, de Marco Bellocchio. Aqui, nunca haverá amparo da Lei, nem resgate, ou grupo de oposição. No máximo, uma resistência ínfima pela Arte como um todo, não apenas o Cinema. Em mais um exemplo deste pequeno reduto do pensar, o filme “Una” discute os desdobramentos de um ato pedófilo, para além da condenação jurídica, socialmente justificada. A antes menina, agora mulher, necessita de uma costura própria de sua história, a ser realizada necessariamente com o pedófilo, após o tempo q este passa no presídio.
A questão, portanto, diz respeito à possibilidade de uma continuidade da discussão da humanidade, dos sentimentos, muito pr’além dos parâmetros criminais. “Vítima” e “algoz” representam funções e lugares sociais, sentimentos humanos, acontecimentos marcantes, “paisagens subjetivantes”. O processo de construção psíquica, sem fim, necessita de ampliação de parâmetros, de um não apaziguamento após uma condenação (justa ou não). O vilão mor da humanidade sempre será o maniqueísmo, terra eternamente fértil à mediocridade de todos nós.
Em “Assunto de Família”, como o próprio título discretamente sustenta, precisamos falar sobre afeto na intimidade. Não para condenar ou para absolver uma “família” q acolhe pessoas mal tratadas por seus pais biológicos, mas para denunciar o abandono social. A denúncia, aqui, recai sobre as “baratas no canto da parede”, onde nosso salto não alcança, apenas se cansa. A destruição psíquica de um abandono afetivo pode ganhar um pequeno alento nas leis de um outro cotidiano, onde outras leis se dão, onde uma outra vida acontece.
As denúncias proliferam recentemente no cinema, como nos excelentes “Cafarnaum” e “Ciganos da Ciambra”. Porém, “Assunto de Família” é mais preciso, para além de ser ou não melhor filme do q esses outros. Kore-Eda não se distrai, não trai seu propósito nem por um instante, não coloca relevo na estética da miséria, nem nos absurdos das leis constitucionais. O diretor, assim como os personagens, não abandona o afeto por nada, “não sai de si nem para pescar” (como diz o grande poeta Manoel de Barros).
O resultado diferencial? Um filme sereno. Uma extrema leveza num tema pesadíssimo como o abandono dos pais, ou a cegueira da sociedade. Uma calma q suplanta o poder das denúncias, q muitas vezes serve de alento à nossa solidão.
Não há apelações, esperança jurídica. Não haverá heroísmo redentor. Resta a silenciosa verdade interna. A história contada de nós para nós mesmos, a versão não compartilhada, vivida apenas na solitude. O demasiadamente humano de Nietzsche. Tristeza e alegria numa pacificada verdade própria, sem mediação. A vida na dor e na delícia do “desamparo fundamental” freudiano.

Petra Costa, A Melhor Diretora Brasileira da Atualidade (“Elena” e “Olmo e a Gaivota”)

Estrear na direção com uma obra-prima (“Elena”) já é algo extremamente raro (o último foi Xavier Dolan, com “Eu Matei Minha Mãe”); realizar o segundo filme (“Olmo e a Gaivota”) com excelência já consolida o lugar de Petra Costa como uma das grandes diretoras do cinema mundial, e como a melhor no cenário do Brasil atualmente.

No primeiro, a diretora atravessa sua própria história, transmitindo a construção do amor entre ela e sua irmã, o suicídio desta, e a “travessia do fantasma” (Lacan) de Petra, elaborando sua tragédia “a sangue e osso”, sem trejeitos, pieguices, distrações ou disfarces. “Elena” é um filme de uma vida inteira, daqueles q não se faz mais de um. Acima deste patamar, apenas os maiores de todos os tempos: Wim Wenders, Woody Allen, Chaplin, Buñuel, Truffaut, Sergio Leone, Polanski, Bertolucci, Tarantino, etc.

A partir de “Olmo e a Gaivota”, Petra Costa ratifica sua sensibilidade fora de qualquer curva, dirimindo qualquer dúvida ceticista sobre sua capacidade de explicitar além de sua vivência direta. Ao acompanhar as idiossincrasias subjetivas de um casal do início ao fim de uma gravidez delicada, edita a la “livre associação” (Freud) a densidade das situações conflitivas (a perda do papel principal na peça, pela protagonista do filme; os meses proibida de sair de casa), vista pela perspectiva de cada um. Além disso, apresenta as questões sem um direcionamento prévio, ou seja, não busca soluções, já q os impasses humanos não necessariamente tendem a alguma coisa. São, portanto, como verbos intransitivos: não nascem atrelados a alguma solução. Apenas existem, e sempre existirão.

A presença de um senso de humor q não banaliza a dor de cada um, e nem “resolve” nenhuma polêmica, colore o cotidiano do casal (ambos atores de teatro) sem nenhum glamour caricato.

A continuidade do casamento, ou sua dissolução, nunca se apresentam como questão central. Assim, Petra Costa me remete ao poeta Manoel de Barros, com sua frase ímpar: “Pássaros me outonam.” A poesia de Manoel desconstrói a superfície de contato entre “pássaro” e “outono”, elevando a experiência sensível a uma amplitude quase infinita. Petra, em “Olmo e a Gaivota”, verbaliza de forma intransitiva o “ser casal” e o “ser grávido”, muito pr’além de qualquer encaminhamento sob encomenda.

Por toda esta sensibilidade nos dois filmes, e a intensidade das sutilezas subjetivas de seus “personagens” (ao criar um documentário, a realidade se torna versão, e as pessoas se tornam personagens), Petra Costa já é a diretora a ser vista, independentemente do q venha a realizar em cinema.

“Cinema bege”, a última revolução no Cinema

Assim como o clássico “Dogma 95” – movimento cinematográfico criado na Dinamarca por Lars von Trier e Thomas Vinterberg q propunha a restrição dos “truques técnicos” como novo traço estilístico -, gostaria de aqui sugerir q o último grande movimento revolucionário no cinema mundial é o q chamarei de “cinema bege”, ou mais genericamente falando, cinema nórdico, por ser o polo de tal inovação.

Bege seria o símbolo icônico de uma discursividade onde intensas emoções são retratadas numa estética radicalmente “não-latina”. Os “vermelhos de Almodóvar”, emblemas visuais tipicamente latinos, expressam tais intensidades com inegável beleza (como a “fecundação gráfica” entre o enfermeiro Benigno e a bailarina em coma em “Fale com Ela”, minha cena preferida na História do Cinema). Enquanto esta estética foi sendo incorporada pelo paladar internacional, o século 21 apresentou-nos a joia do cinema bege.

Na contramão dos vermelhos latinos, o cinema nórdico traz “O Homem sem Passado” (Aki Kaurismaki; 2001), “Histórias de Cozinha” (Bent Hamer; 2003), “Elling” (Per Christian Ellefsen; 2001), “Além do Desejo” (Pernille Fischer Christensen; 2006) “Em um Mundo Melhor” (Susanne Bier; 2010), “Caro Sr. Horten” (Bent Hamer; 2007), “Submarino” (Thomas Vinterberg; 2010), “1001 Gramas” (Bent Hamer; 2014), este último esteve em cartaz no Festival do Rio 2014.

A partir dos supracitados, fica claro q o diretor expoente do cinema bege é Bent Hamer. E o filme-alusão máxima deste novo estilo é “Histórias de Cozinha”, onde uma empresa contrata freelas para ficarem de “observadores não-participantes” no cotidiano de cozinhas de proprietários q aceitaram um dinheiro para oferecerem suas casas à pesquisa. O objetivo era descobrir “quantos passos uma pessoa dá entre cada atividade do dia-a-dia na cozinha”, para daí então criar a “cozinha perfeita”, com os eletrodomésticos dispostos da maneira mais geograficamente prática (?!…) A partir desta premissa nonsense, o diretor nos apresenta uma belíssima história do nascimento de uma amizade entre observador e observado. Numa dança silenciosa, em tons pastel (bege), nós espectadores somos inundados com jorros de afetos e afetações, numa estética extremamente sutil, q nada perde em intensidade para nenhum vermelho latino.

Diferentemente do minimalismo de um excelente cinema “oriental” (“Primavera, Verão, Outono, Inverno e… Primavera”, de Kim Ki-duk, por exemplo), q se utiliza de uma câmera microscópica para enfatizar sutilezas, este cinema nórdico transmite as intensidades dos personagens através da cena como um todo – cenário, silêncios, movimentos leves, olhares ao fundo.

Como o filósofo moçambicano José Gil – q considero o mais importante da atualidade – nos coloca em seu texto “Abrir o Corpo”, nós “ouvimos com o corpo”. Grande articulador da Psicanálise com a Dança, Gil propõe q pensemos nosso corpo como poroso, num sentido forte do termo, enfatizando assim nossa recepção de sensações (ao q ele nomeou “pequenas percepções”). São micro sutilezas, como as “inutilezas” do poeta Manoel de Barros.

Cinema bege, José Gil e Manoel de Barros, belíssimas variações discursivas sobre a beleza sutil do humano, percebido à despeito de recursos de ênfase.