Freud, Dostoiévski, Kafka/Welles e Masud Khan nos filmes “O Duplo” e “O Processo”

Tive uma grata surpresa ao assistir a “O Duplo”, baseado no romance homônimo de Dostoiévski. Adaptação muito interessante, fotografia de ótimo nível em tons cinza escuro. O protagonista começa perdendo seu lugar num metrô vazio para um estranho, q rapidamente vamos percebendo ser seu alter ego, versão proativa e super autoconfiante (oposição imaginária à sua realidade de inércia e apagamento).

Inicialmente, este “outro” personagem soa como um parceiro alvissareiro, estimulando seu crescimento na empresa onde trabalha. O ambiente profissional é surrealisticamente burocrático, lembrando “O Processo” (obra-prima de Kafka, adaptado ao cinema por Orson Welles) e “O Castelo” (também do escritor tcheco), cheio de “pequenos poderes” em forma de labirinto intransponível. Ao alter ego, no entanto, tudo é facilitado, as portas sempre se abrem, as pessoas sorriem e mostram reconhecimento por seus atos.

Portanto, este “outro” inicialmente faz a função de “ideal do eu” (conceito freudiano referente às nossas prospecções e expectativas subjetivas, para dizer de forma sucinta), apresentando um caminho de norteamento evolutivo. Aos poucos, esta alteridade toma a forma de supereu tirânico (Freud), massacrando o protagonista, empurrando-o a uma espécie de “zero absoluto”, metaforicamente um suicídio. Novamente, a analogia com o “Sr. K” de “O Processo” é direta. Melanie Klein, q deixou seu nome marcado na história da Psicanálise, falava da “posição esquizo-paranoide”, quando o sujeito teme um aniquilamento proveniente de paradeiro desconhecido, questão bastante patente na angústia do protagonista de “O Duplo”.

Enquanto Freud dizia q o supereu / ideal do eu possui 2 facetas – a positiva, como referência evolutiva, e a negativa, de exigência tirânica -, Daniel Kupermann prefere pensar o supereu apenas como função negativa e opressora, separando-o do ideal do eu, tendo este a positiva função de referencial expansivo. Considero as duas interpretações bastante próximas, porém a de Kupermann me parece mais interessante psicanaliticamente. No filme, o protagonista fica sem espaço diante de seu alter ego desde o início, portanto este esmagamento poderia ser considerado uma projeção de um supereu implacável, mórbido.

A estética lúgubre de “O Duplo” e de “O Processo”, assim como de boa parte dos filmes de Ingmar Bergman, explicita o peso constante e massacrante de uma Lei interna impossível de ser seguida, auditada e punida eternamente através de um sentimento de culpa muitas vezes só dissolvido pelo humor ou pela morte. Ou por um processo de elaboração em sessões de análise ou através da arte.

Por fim, o psicanalista Masud Khan utiliza o conceito de “duplo” (já apresentado por Freud na obra-prima “O Estranho”), como questão clínica observada em muitos de seus analisandos. Ele percebia q era comum q as pessoas chegassem à análise demandando q suas facetas desagradáveis fossem exorcizadas, a fim de q a parte “mais interessante” ou “bem sucedida” prevalecesse com exclusividade. Na contramão desta expectativa, Masud trabalha a coexistência de todas as facetas subjetivas, num paradoxo includente q venha a permitir uma espécie de diálogo entre essas partes, articulando as diferenças sem q uma suprima a outra.

A coexistência em paradoxo de nossas diferentes facetas subjetivas, portanto, seria a única condição demasiadamente humana possível, ainda q dificilmente caiba numa lógica de vitrine “Fakebook” cor de rosa..

“A Casa Silenciosa”, o melhor terror dos últimos anos

“La Casa Muda” (título original) é o grande terror desde “A Bruxa de Blair”. Gravado em impressionantes 4 dias, e c/ orçamento de US$6 mil, o filme uruguaio tem feito sucesso mundo afora (Cannes, etc). Filmado em segmentos de 10min, simulando 1 único take. Baseado em fatos reais.
Tenso de ponta a ponta, 78min de angústia não facilitada por “pré-sustos” ou qualquer pista atenuadora q anuncie o porvir. Multifacetado, inclui suspense e terror à trama, numa casa assustadora, porém c/ pouquíssimas “trucagens” (como portas rangendo, teias de aranha ou porões escuros). Não há monstro, como em Blair, há apenas um não saber, sustentado c/ extrema qualidade pelo excelente diretor. A “monstruosidade” seria a “monstração”, ou seja, a explicitação do horror q pode haver no humano. Como Freud defende no clássico texto “O Estranho”, não há como temer a “pura estranheza”, pois não há como concebê-la. Portanto, tememos sempre aquilo q já lá estava, em nossa íntima subjetividade, inconsciente, recalcado.
Se o brilhantismo de “A Bruxa de Blair” é provocar q cada um projete sua própria “bruxa” ao final, em “A Casa Silenciosa” a ênfase magistral fica no clima de suspense – real protagonista no filme. O diretor usa sua câmera refinada para impedir q o espectador descanse no distrair-se. Ainda q também contenha cenas menos tensas, não há tempo para piadas ou muita respiração. Se suspense for causar uma suspensão, aqui o resultado é perfeitamente logrado.
Nem a suposta solução do mistério – clássica nesses filmes – tem aqui seu destaque. O “ar q sobe e nunca sai” é o grande tempero. Obra-prima, imperdível. Agradeço à querida Mariana pela dica e repasso com prazer.

Estilo X Pejorativismo (sobre “Nome Próprio”)

Estilo X Pejorativismo

(Psicanálise, Cinema e Poesia)

 Bruno Abreu de Mello Campos*

A insistente tendência humana ao maniqueísmo cria um efeito de “metástase” na capacidade de se perceber de forma aberta a diferença. Criar um espaço interno capaz de receber a diferença, num tempo muito anterior às positivações e negativizações, pressuporia uma diferenciação de si.

O intervalo entre a percepção e a valoração carece de provocações a fim de ser alargado, povoado, habitado. A obra de arte poderia, aqui, produzir um efeito de interessante perturbação na tendência à pressa de “compreender e concluir” (tal como colocado por Lacan em seus “Escritos”). A disruptiva afetação da arte permitiria ao “instante de ver” um desdobramento em perplexidade, com duração estendida, suportada.

O cinema de Wim Wenders, por exemplo, oferece esse espaço alargado, planos de silêncios ou sonoridades de fundo. Exemplo disto é a cena de “Estrela Solitária”, onde o protagonista, um pai ausente, vive uma noite inteira de sonhos, pensamentos e alucinações, enquanto a câmera o circunda sentado num sofá quebrado em meio ao “lixo” jogado pelo filho. Wenders dejeta o personagem, provocando um espaço de projeção ao espectador, onde este pode receber e sentir essa emoção-dejeto até sua ultimidade. Ao ser entrevistado em “Janela da Alma” (Brasil; 2002), Wenders coloca que a maioria dos filmes apresenta imagens emendadas, não disponibilizando esse intervalo à existência em imersão por parte do público.

Esse questionamento é brilhantemente discutido no texto “O Estranho” (obra-prima freudiana). Ao comentar um conto de Hoffmann (“O Homem de Areia”), Freud analisa estranhamentos principalmente enquanto “secretamente familiares”. Esta interpretação é fundamental para inibir a tentação onipotente de considerarmos uma “abertura ao novo” em estado de pureza (Lacan talvez nomeasse isto como delírio de autonomia). A conexão com alguma familiaridade seria, portanto, condição de possibilidade para qualquer contato com a diferença.

Tomando essas questões como pontos de partida, chegamos ao filme “Nome Próprio”, de Murilo Salles. Leandra Leal (ótima no papel) vive uma escritora de moradia supostamente errante. A cada novo apartamento, repete algumas atitudes específicas: anda nua pela casa, escreve nas paredes, bebe bastante, transa supostamente de forma promíscua, se complica para pagar o aluguel até ter que sair.

Em várias exibições, o filme provocou intensas afetações, desde conversas revelando incômodos em voz alta, até saídas muito antes do final. Muitos viram a protagonista como uma pessoa “perdida, desvinculada, desregrada, descontrolada”. Um dejeto humano, errante, nômade.

Se articulássemos o filme a certas partes da obra de Bukowski, ou à de Baudelaire, poderíamos talvez discutir a potência subversiva da indigência, ou até sua estetização glamourizada.

A proposta aqui, no entanto, endereça-se à pejorativização do nomadismo da personagem de Murilo Salles. O in-cômodo causado por seu modo de vida, muito antes de ser apenas opinião, revela, talvez, uma a-versão prévia em espectadores não necessariamente considerados “típicos moralistas”, ou qualquer estereótipo de “indisponibilidade ao novo”. Daí um dos vários motivos para considerarmos o filme uma obra de arte com especial capacidade de alargar ou de estreitar o espaço entre o instante de receber/ver/perceber, e os tempos de compreender e concluir/valorar. Neste sentido, tanto alargar quanto estreitar esse intervalo seriam a mesma afetação. O que diferiria, aqui, seria o potencial de suportabilidade ante a perplexidade.

Seguramente, o alargamento, como dito anteriormente, não deveria ser idealizado. Isto, pois a proximidade à estranheza (Real) não é passível de se manter “desencapada”. Ao se abrir espaço ao “novo”, cedo ou tarde o sujeito o incorpora, o apadrinha, acomodando o novo morador.

Em “Nome Próprio”, a personagem poderia ser vista em grande potência se pensássemos um nomadismo enquanto residência fixa, nada deixando a dever à capacidade de sedimentação ou de vinculação. Portanto, a qualidade de nomadismo não precisaria ser pejorativizada, e nem tampouco glamourizada (enquanto antiestagnação).

Chegando então à questão-título, uma das interpretações possíveis quanto a repulsa causada pela personagem trazida por Murilo Salles diria respeito às inúmeras barreiras que dificultam o acesso à “simples possibilidade” de olhar para seu modo de vida como um estilo. Se o nomadismo puder também ser visto como “não sintomático em si”, se as marcas que a protagonista deixa nas paredes dos apartamentos e as marcas que carrega em seu corpo puderem ser dignificadas ao nosso olhar, e se, sobretudo, suportarmos por algum tempo a mais a Real angústia e a perplexidade diante da diferença, talvez possamos libertar a personagem do estereótipo de perdida, e recebê-la com o status de Um Nome Próprio. Des-perdidos, talvez, ficássemos nós.

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* Psicanalista, Professor e Membro Titular da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, coordenou cursos de Psicanálise e Cinema na PUC-Rio, em Cabo Frio e em Niterói, foi Professor da Universidade Santa Úrsula (Pós e Graduação).

# Outros filmes: “Só Dez por Cento é Mentira – A Desbiografia Oficial de Manoel de Barros”; “Dzi Croquettes”; “Moscou”.

REFERÊNCIAS:

BAUDELAIRE, C. Espanquemos os pobres. In:_____Pequenos Poemas em Prosa. 2ª edição. Record, Rio de Janeiro, 2009.

BUKOWSKI, C. Factotum. 1ª edição. L&PM EDITORES, Rio de Janeiro, 2007.

FREUD, S. O estranho (1919). In:_____Obras Completas (VOL. XVII). Edição Standard Brasileira. Imago, Rio de Janeiro, 1969.

KANT, I. A paz perpétua: um projeto filosófico, in: A paz perpétua e outros opúsculos.

Trad. Artur Morão. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2009.

LACAN, J. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. In:_____Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1998.

_____. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1998.

Rio, 25/05/2011.