“”Coringa”, a Sátira do Riso Livre

Para além do personagem antagonista do Batman, Coringa é José da Silva, ou seja, qualquer um.
Alguém tão comum, que chega a não existir.
O sistema o apagou, e ninguém se lembra dele.
Viveu “preso do lado de fora”, como diria Solal Rabinovitch (psicanalista lacaniana), foracluído do sistema, algo que se tornou seu único “crachá” (“Perdão, eu rio fora de hora.”), seu sobrenome-do-pai, uma suplência de inclusão na ordem social.

De tanta opressão subjetiva, de tanto ser espremido, nasce o Coringa.
A figura do Anti-Herói seria uma “acne do sistema”, um efeito da tentativa de eliminação do mundano. De tanto dessubjetivar José, só restaria Ninguém.

A construção de um Coringa a partir de um Zé Ninguém é um dos maiores brilhantismos do roteiro deste filme.

À “desentificação” reage a “entificação”, isto é, a pulsão de morte – “pulsão por excelência”, segundo Lacan -, exige trabalho subjetivo.
À esta exigência, nasce o Coringa enquanto resistência (no sentido de força, como propõe o filósofo Foucault).

A afirmação do Coringa não é apenas contra a opressão das autoridades, ou de uma casta burguesa. A luta é contra qualquer repugnância à diferença, como na cena do ônibus, onde o protagonista é desqualificado por uma senhora negra aparentemente de classe baixa que “protegia” seu filho da estranheza, feia como tudo aquilo que não é espelho.

Coringa entra, então, pelo furo/buraco do sistema, provocando efeito crescente, assim como o vírus que enfrentamos em tempos de pandemia. “Suja a canastra” (como o curinga do baralho), mas “bate” no sistema e “pega o morto”, ou seja, reúne todas as cartas abandonadas do baralho e pode virar o jogo a seu favor.

O poder vigente agora teme a horda dos José Ninguém. A cidade é temporariamente tomada (mas não controlada, pois há desordem e não uma nova ordem), o caos se espalha como um grande bug.

O emblema do “sorriso fora de hora” agora representa o sorriso demoníaco, o fantasma da desordem da vida cotidiana, o fantasma do riso livre.
Adaptando do filósofo Kierkegaard (“Diário de um Sedutor”), o maior presente que se pode oferecer a alguém é o seu próprio constrangimento.
Este é o presente de grego do Coringa à sociedade.

No filme “Em Busca da Terra do Nunca”, o autor criativo percebe que a única forma de inserir uma nova linguagem teatral em um sistema viciado seria colocar “uma criança a cada dez assentos” na noite de estreia. Sua proposta é exatamente um efeito disruptivo na repugnância à diferença. O horror à mudança talvez cedesse, fraquejasse ante a liberdade de uma criança.

Nessa história de Peter Pan, a ternura incita a revolução; já no “Coringa”, é a agressividade, a sátira perversa (no sentido psicanalítico, não enquanto maldade) que faz o mesmo papel.

Os ratos de Gotham City saem dos esgotos, rebelando-se contra a morte induzida por Cloroquina. O grito desesperado é por dignidade humana, por legitimar sua existência, seu direito a habitar a Terra sem pudor. Sem licença, eles vão à luta. Luta inglória, êxito fugaz. “Vitória de Pirro”? Não. A vitória aqui tem um efeito maior. Efeito de redenção. “Efeito de sujeito”, como sustenta o psicanalista Contardo Calligaris em uma pensabilidade lacaniana.

Nesse ponto, talvez repouse o cerne da revolução do Coringa: a redenção do efeito de sujeito. O instante épico está muito além da vitória num sentido estrito. O triunfo aqui tem efeito subjetivante, deixa resíduo eterno. Mais do que mártires sociais, os Coringas naquela noite obtiveram uma identidade própria, no sentido mais íntimo do termo. Asseguraram um lugar subjetivo, não passível de expropriação. Dali, ninguém mais os tira. Estão, enfim, presos do lado de dentro.

Só o Afeto Interessa (“Assunto de Família”)

Poucas vezes vemos no cinema um diretor conseguir ser totalmente preciso no q pretende transmitir, sem recorrer a panfletagens, ou a agressões retóricas ao sistema de pensamento oposto. O japonês Hirokazu Kore-Eda, em “Assunto de Família”, atingiu com plenitude este objetivo, com a eficácia de um atirador de elite. Refiro-me com isto à colocação do afeto como significante central no filme, como protagonista único.
Relembro a obra-prima máxima neste sentido, onde o fora-de-série Almodóvar contempla mais do q ninguém na História este intento, com o clássico “Fale com Ela”. Aqui, o enfermeiro “Benigno” sustenta a fé na recuperação de uma paciente em coma duradouro, cuidando de maneira indescritível ao olhar e à interpretação do senso comum. O “milagre” acontece através de um abuso sexual, demarcando a transgressão como uma decisão para além da suportabilidade social. Como disse certa vez uma pessoa muito querida, o transgressor passa a viver num eremitério (neologismo criado por ele mesmo), assumindo com isto todos os enormes custos desta decisão. Este eremita, portanto, morreu para o mundo. Não possui a esperança do retorno, não conta com a possibilidade de volta, portanto não se tornará música, como o “irmão do Henfil”, nem presidente, como José Mujica.
Aos transgressores aqui mencionados, apesar de “benignos”, só restará a morte, a prisão perpétua, o banimento social. Estarão “Presos do Lado de Fora”, como no poético livro da psicanalista Solal Rabinovitch sobre a Psicose. E eles sabem disso, como assume o personagem acusado de estupro na obra-prima “O Processo do Desejo”, de Marco Bellocchio. Aqui, nunca haverá amparo da Lei, nem resgate, ou grupo de oposição. No máximo, uma resistência ínfima pela Arte como um todo, não apenas o Cinema. Em mais um exemplo deste pequeno reduto do pensar, o filme “Una” discute os desdobramentos de um ato pedófilo, para além da condenação jurídica, socialmente justificada. A antes menina, agora mulher, necessita de uma costura própria de sua história, a ser realizada necessariamente com o pedófilo, após o tempo q este passa no presídio.
A questão, portanto, diz respeito à possibilidade de uma continuidade da discussão da humanidade, dos sentimentos, muito pr’além dos parâmetros criminais. “Vítima” e “algoz” representam funções e lugares sociais, sentimentos humanos, acontecimentos marcantes, “paisagens subjetivantes”. O processo de construção psíquica, sem fim, necessita de ampliação de parâmetros, de um não apaziguamento após uma condenação (justa ou não). O vilão mor da humanidade sempre será o maniqueísmo, terra eternamente fértil à mediocridade de todos nós.
Em “Assunto de Família”, como o próprio título discretamente sustenta, precisamos falar sobre afeto na intimidade. Não para condenar ou para absolver uma “família” q acolhe pessoas mal tratadas por seus pais biológicos, mas para denunciar o abandono social. A denúncia, aqui, recai sobre as “baratas no canto da parede”, onde nosso salto não alcança, apenas se cansa. A destruição psíquica de um abandono afetivo pode ganhar um pequeno alento nas leis de um outro cotidiano, onde outras leis se dão, onde uma outra vida acontece.
As denúncias proliferam recentemente no cinema, como nos excelentes “Cafarnaum” e “Ciganos da Ciambra”. Porém, “Assunto de Família” é mais preciso, para além de ser ou não melhor filme do q esses outros. Kore-Eda não se distrai, não trai seu propósito nem por um instante, não coloca relevo na estética da miséria, nem nos absurdos das leis constitucionais. O diretor, assim como os personagens, não abandona o afeto por nada, “não sai de si nem para pescar” (como diz o grande poeta Manoel de Barros).
O resultado diferencial? Um filme sereno. Uma extrema leveza num tema pesadíssimo como o abandono dos pais, ou a cegueira da sociedade. Uma calma q suplanta o poder das denúncias, q muitas vezes serve de alento à nossa solidão.
Não há apelações, esperança jurídica. Não haverá heroísmo redentor. Resta a silenciosa verdade interna. A história contada de nós para nós mesmos, a versão não compartilhada, vivida apenas na solitude. O demasiadamente humano de Nietzsche. Tristeza e alegria numa pacificada verdade própria, sem mediação. A vida na dor e na delícia do “desamparo fundamental” freudiano.