A Foto do Trauma (“Na Ventania”)

Há muito tempo eu não vivia uma sessão memorável no cinema, daquelas de alterar todo o funcionamento corporal, lágrimas e silêncio, estupefação plena, como o q ocorreu ao assistir à obra-prima “Na Ventania”. Dos em torno de 100 filmes q consigo assistir por ano, muitos são excelentes. Nesses, encontro apenas uns 5 maravilhosos, em média; 1 ou 2 desses, considero obras-primas. “Na Ventania” é um degrau acima, é um dos inesquecíveis, eternos, a entrar na lista dos melhores da vida, algo q demora alguns anos a surgir…

Fotografia poética. Poderia ficar com apenas esta tosca tentativa de “definição”. Isto pq o delicado poder da fotografia enquanto canal de transmissão especialmente tende a calar, a praticamente impedir o acesso sempre capenga das palavras. Poderia-se afirmar q todas as expressões artísticas vão aonde o verbo não alcança. Ok, porém costumeiramente nos aventuramos a comentar filmes ou livros, tal como aqui neste blog. Artes como Pintura, Fotografia e Dança talvez provoquem um outro percurso emocional, por onde o dito tem pouco ou nenhum recurso…

Enfim, já q essa ventania me assoprou a escrever, q isso seja o q puder. O diretor Martti Helde (Estônia) expõe de forma dura, seca e nada apelativa a dor da Guerra (tema já tão batido no cinema). Para tal, parte das cartas de uma mulher (estudante de filosofia, isso faz diferença) q foi levada a um campo de trabalho forçado com sua filha pequena, a seu marido numa prisão de guerra.

A brilhante câmera do diretor congela cada cena (os atores ficam parados) e a percorre muito vagarosamente, frame a frame, trazendo uma luz do insuportável ao trauma, ao absurdo (ao Real de Lacan, para fazer um paralelo psicanalítico). Com isso, inscreve a dor impossível como possível, ao menos parcialmente, é claro.

A metáfora do traumático, “paralisada” pela fotografia, traz ao espectador uma tese sobre a memória humana. De q forma – pensaria o diretor do filme – a emoção traumática tatua a carne do ser humano durante a Guerra? Exatamente através de fotografias, assim o bárbaro marca em definitivo o corpo subjetivo, inscrevendo o surrealismo das imagens sem representação outra, apenas um choque, como um flash das máquinas mais antigas.

Assim, o diretor de “Na Ventania” nos brinda com uma aula de fazer cinema, um jorro de sensibilidade, uma hipótese psíquica sobre a memória durante a Guerra (aqui, o holocausto soviético). Martti Helde não diferencia as dores – da separação da família à morte concreta, das sofridas imagens dos outros às de si mesmo -, apresenta-as todas no mesmo vagar, na toada do insuportável q tem q caber. Outros diretores, como o magistral Alain Resnais (“Hiroshima, Mon Amour”, “Noite e Neblina”) já haviam realizado obras marcantes através da fotografia e sobre o mesmo tema do absurdo da Guerra, mas arrisco dizer q aqui foi inventada uma outra forma de criação cinematográfica. Com o bônus de uma tese metapsicológica sobre a memória do traumático. Brilhante, arrebatador. Tato pra atuar o tatuar.

 

“Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência”: a melancolia no brilhante cinema nórdico

Praticamente uma obra-prima, este filme sueco impressiona pela ousadia de propor um ensaio sobre cinema. Sua discursividade multifacetada dialoga com bastante proximidade com a trajetória do mestre Alain Resnais (“Ervas Daninhas”, “Hiroshima Mon Amour”, “O Ano Passado em Marienbad”). Sua forma descontinuada de apresentar questões impacta por estar quase sempre à medida de alfaiataria (à exceção de um tom acima de surrealismo no terço final).

Seus personagens carregam o peso da melancolia sem disfarces, realçada pela insistência de algumas cenas, pela precisão dos atores e pelo impressionante esmero do cinema nórdico em trazer sua discussão de forma radicalmente enxuta, sem apelações. Tragédia e humor negro caminham de forma desconcertante, bela e sem bagunça. A parte humorada lembra o excelente e refinado “O que Resta do Tempo”, do palestino Elia Suleiman.

O diretor sueco apresenta as cenas sem “distrações” em torno, como se escolhesse a ausência plena de “coadjuvações”. O vazio emocional de dois amigos vendedores de “entretenimento” (pequenos apetrechos de fazer rir) é enfatizado em seu cotidiano repetitivamente dramático, triste. A decadência e o desespero sem gritos expressam o fim das forças da vida destes dois amigos em falência. No entanto, só lhes resta insistir no vazio, pois em volta não há mais nada. Enquanto isso, o filme traz o paralelo de um pós-guerra devastador. A despeito do impossível, a dona de um bar vende doses de bebida por beijos nela, enfatizando a força de resistência humana, na mais bela cena do filme, ao som de uma música alegre e sem sombra de alienação.

Quando Freud escreveu o célebre texto “Luto e Melancolia” (equivocadamente interpretado como “luto ou melancolia”), postulou a emblemática frase de q o melancólico vive “à sombra do objeto perdido”, eternamente fadado a uma mórbida repetição. Aqui neste filme, os personagens insistem durante sua própria falência, num misto de força e desesperança includentes, a única realidade de ser humano. Ambivalentemente forte e fraco, desistente e insistente.

Parafraseando Nietzsche, demasiadamente humanos.