Psicanálise, “A Grande Aposta”

O q é análise? É possível responder a esta pergunta?

A primeira resposta seria não, pois se análise é um ato singular, pessoal e intransferível, não há generalização possível q organize suas categorias de funcionamento universalmente.

Uma segunda resposta possível, tão verdadeira quanto a primeira, precisaria reunir especificidades do processo psicanalítico q estivessem supostamente presentes na análise de qualquer um. Idealmente, é claro, doutra forma nenhuma teoria seria possível.

Poderíamos, talvez, começar quebrando um lugar-comum sobre psicanálise, q nos sirva como exemplo suficiente por hora. “Análise é algo a longo prazo. Coisa pra muitos anos…” Na realidade, análise não possui um pressuposto ou tendência cronológica. Tudo depende dos projetos – conscientes e inconscientes – q emanarem do encontro analista-analisando, tanto em termos de quantidade quanto em profundidade. O efeito dessa coisa chamada encontro (ou “Terceiro”, como nomeou o psicanalista Thomas Ogden, um de meus preferidos) desdobra-se também no tempo, q tem Chronos como uma de suas acepções. Isto é, a partir da singularidade do par analista-analisando, haverá um desdobramento da análise numa certa temporalidade, através de alguns específicos caminhos e não outros, percorrendo determinadas emoções e atingindo transformações particulares. O “prazo” de duração da análise, portanto, está no meio desta enorme malha de possibilidades.

Partindo para uma outra característica bastante própria a uma análise, encontramos a ideia de aposta. Optarei aqui por tomar a ideia de aposta num sentido bem forte da palavra. Nenhum dos significados q encontrei nos dicionários se aproxima o suficiente do q aqui quero propor. Penso aposta, inicialmente, como Ferenczi (psicanalista húngaro, provavelmente o mais importante de todos q conheci), quando este diz q “sábio é o ser que adivinha”. Adivinhação, aqui, nada tem a ver com previsão de futuro. A ideia de Ferenczi é q qualquer pessoa tem condições de acompanhar algum acontecimento tão íntima e atentamente q poderia então ad-vinhar algo do q está por vir. Quando algo se dá, traz consigo inúmeros “penduricalhos” q configuram os múltiplos desdobramentos em potencial. Portanto, quando algo vem, outras coisas ad-vêm juntamente. O psicanalista, como qualquer outra pessoa, pode propor certos usos possíveis destas tendências, desde q, como tudo, com grandes cuidados éticos.

Conversando com um analisando economista, há uns meses atrás, falávamos da palavra cenário, cotidianamente utilizada em seu trabalho. Traçávamos vários cenários possíveis, e daí organizávamos e criávamos caminhos de trabalho analítico juntos. Este seria apenas um exemplo de usos da aposta, no caso a partir de cenários possíveis (assim como as “condições de possibilidade” do filósofo Kant).

Gostaria, finalmente, de propor uma articulação com “A Grande Aposta”, indicado ao Oscar de Melhor Filme deste ano. Surpreendentemente, apesar de bastante hollywoodiano, ele nos traz uma ótima discussão. O personagem de Christian Bale (um dos melhores atores da atualidade) antecipa uma crise inédita no mercado imobiliário. Ao invés de focar no falo deste personagem e dos poucos q compram sua ideia – clássico recurso no cinema comercial -, o diretor opta por denunciar a mediocridade não apenas dos americanos, mas de praticamente todos os “analistas financeiros” do mundo. Ainda q o tema “ações/imóveis” seja sua matéria de estudo e trabalho, e seu ganha-pão, todos pensam em manada (como retratavam insistentemente Buñuel, Pasolini e outros tantos há algumas décadas).

A ênfase, portanto, está na extrema impossibilidade de fazerem a simples pergunta: “Será?”. Os raros q a fazem, claro, enriquecem financeiramente (já eram mais ricos noutros sentidos). Além disso, o personagem de Bale (um tantinho estereotipado como louco/excêntrico) se questiona: “Quem está errado nunca sabe, e nem o porquê de estar.” Ele sabia q pelos argumentos de massa dos q acreditam no “em time que está ganhando não se mexe”, ele não estava errado. Porém, poderia haver alguma variável desconhecida (como alguma fraude no sistema, não cogitada por ele).

Pior, se ele estivesse errado seria o triunfo da mediocridade, e nunca um fator específico não mensurado (como no final do filme “A Promessa”, com Jack Nicholson). Quantas vezes conseguimos apostar no “não consagrado”? O q há de tão sagrado nas apostas viciadas? Poderíamos conjeturar q um rapaz de pernas tortas como Garrincha marcaria seu nome exatamente como jogador de futebol, por exemplo? Quantos filmes não consagrados por Hollywood nos arriscamos a assistir? Se alguém procura uma análise estando muito mal, poderíamos vislumbrar algo mais do q apenas a melhora daquele mal-estar?

Tendo em vista todas essas questões, proponho pensarmos na especificidade do trabalho de análise como uma Grande Aposta. Tomarei “aposta” no sentido de olhar além do sagrado, do totem q nos entorpece os sentidos (ler o texto “Totem e Tabu” de Freud). Este posicionamento já no início de uma análise antecipa algum importante esvaziamento do Grande Outro* q impede a liberdade do sujeito.

A partir do potencial apresentado inconscientemente pelo próprio analisando, o analista já começa a trabalhar dentro desta Grande Aposta. Enquanto isso, o analisando segue inebriado pela fragrância do vislumbre de q algo ali parece fazer sentido. Nada mais, apenas isso. Claro q não estou me atendo aos analisandos q creem cegamente em qualquer coisa vinda deste analista Suposto Saber.

Portanto, analista e analisando entram numa trilha “ao som” do poeta Maiakovski: “Eu caminho no escuro, pois cogito a luz”, num mergulho de Lúcifer, abandonando a luz divina supostamente pré-assegurada, doa o q doer, como diria Clarice Lispector ou a personagem do filme “Livre”. Sem o glamour de qualquer coisa tipo “Deixa a vida me levar”, sem a suposta garantia do saber prévio do analista, sem Freud nem Lacan como seguro-fiança, só resta a vertigem. Ética e dolorida. E sem final feliz, pois ganhando umas e perdendo outras, “no final a banca sempre leva”, como diz o diabo em “Desconstruindo Harry”, a obra-prima máxima de Woody Allen.

 

 

* Grande Outro: termo criado por Jacques Lacan para nomear o cenário singular q cada um de nós carrega como fantasma viciante. O q nos faz repetir, repetir, até, no melhor dos casos, ousar alguma transformação.

 

Travessias do desamparo (“Livre”, “Na Natureza Selvagem” e “Elena”)

Sem sombra de dúvida, “Elena” e “Na Natureza Selvagem” têm mais qualidade q “Livre”. Porém, este último possui vários méritos surpreendentes. Já valeria por suscitar a articulação c/ essas outras obras tão marcantes no cinema.
“Elena”, provavelmente o q vai mais fundo na questão da dor e da busca por voltar a respirar, é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Petra (a diretora) filma sua história c/ sua irmã Elena, q cometeu suicídio quando Petra ainda era menina. A beleza do amor entre as irmãs é expressa à perfeição, sem o menor traço de pieguice ou de “linguagem interna” não compreensível ao espectador. Petra transmite o atravessamento de sua dor pela perda da irmã, buscando alguma possível e humana sublimação (termo q Freud retirou c/ ótima simplicidade da química: “passagem do estado sólido para o gasoso”). A diretora vai à própria infância para arrancar visceralmente seus pedaços mortos. Sua autenticidade corajosamente ímpar impacta e derruba qualquer um q tenha disponibilidade ao sentir (assim como o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi cunhou seu “sentir com”, para falar de sua afetação com seus analisandos). Petra arrisca sua sanidade em busca de algo mais q sobreviver – lembrando o poético trecho “consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade”, da belíssima música de Renato Russo (“Sereníssima”). Atravessa seu fantasma através da arte, assim como tenta o pintor Gorky, personagem do filme “Ararat”, obra-prima de Atom Egoyan. Através da Psicanálise, através da Arte, o mergulho pelo trágico permite uma possibilidade árida, sem garantia alguma.
Em “Na Natureza Selvagem”, Sean Penn expressa magistralmente a busca de um jovem por se livrar da opressão superegoica introjetada pelos valores impostos por seus pais. Conquista o direito a estudar em Harvard (sonho/exigência de seus pais), queima carro e dinheiro – prêmios q eles lhe dão -, e parte para ficar algum tempo no Alasca, totalmente sozinho. Conhece algumas pessoas extremamente interessantes e sensíveis ao longo do percurso, porém nunca se disponibiliza a mais q um “flerte”, pois está fechado em sua reta intenção. O q ele não percebe é q sempre levamos o trágico na mochila, pois não há apagamento possível das memórias afetivas; as milhas de distância podem no máximo ser um paliativo interessante enquanto não é possível enfrentar o fantasma, cortejar a insanidade q Petra desperta de e em Elena, no outro filme. A onipotência/arrogância dos pais do garoto o acompanha ao Alasca, escondida, até ressurgir em sua morte, quando ele acha q pode sobreviver no gélido deserto com apenas um livrinho de plantas comestíveis. Ousado como gente grande, ingênuo como um menininho q foge p/ a casa de árvore no quintal. O “retorno do recalcado”, como nos diz Freud, é implacável, inexorável.
Enfim, voltando ao filme “Livre”, a personagem de Reese Witherspoon busca uma andança de 3 meses numa severa trilha, deserto e neve incluídos. Durante seu percurso, visita sua história c/ a mãe, recentemente morta de um câncer súbito. “Corteja” seus tempos de drogadição e promiscuidade (obviamente sem moralismos aqui), e seus episódios de raiva da mãe, por esta ter escolhido um marido alcoólatra e violento. Machuca seu corpo fisicamente na trilha, como tantas vezes vi pessoas cortando seus pulsos para tentar expurgar suas dores emocionais. Das drogas, passando pela promiscuidade, até o corpo ferido na trilha, a protagonista percorre a “travessia de seu fantasma” (termo bem colocado por Lacan), tentando rasgar sem arrebentar. Afinal, pergunta-se: “Nunca me redimirei?”, “Ou já me redimi?”, “Errei ao me machucar?”, “Ou precisei disto para chegar noutro lugar?”
Portanto, “Livre” merece todo o crédito pelo uso apenas comedido dos clichês hollywoodianos, por alguns questionamentos profundos e por evocar outros filmes de tamanha sensibilidade.

“Amores Inversos” e “Tudo Pode Dar Certo” – Revoluções subjetivas

“Amores Inversos”, excelente filme, surpreendente desde o princípio. Uma governanta/babá (Kristen Wiig, incrível no papel) – extremamente tímida, obsessiva, retraída e apagada -, é contratada para cuidar por uma nova família. Os traços perversos da adolescente da casa e uma amiga desta (ainda pior), constroem um romance imaginário da governanta com o pai da menina de q ela cuida. A partir daí, a feminilidade da babá sai do armário, do apagamento e ousa apostar numa vida erotizada pela 1a vez. Enquanto isso, o pai da menina (vivido por Guy Pearce, ótimo) vive afundado nas drogas, numa culpabilização perpétua por ter causado o acidente q matou sua mulher.

O improvável encontro entre ele e a babá desperta-os inusitadamente. As diferenças de estilo e de fragilidades entre os dois instigam novas possibilidades emocionais em cada um. O filme ressalta a repercussão deste contraste radical de subjetividades, disruptiva para todos.

O despertar causado pela alteridade é também o tema de “Tudo Pode Dar Certo” (2009), maravilhoso filme de Woody Allen. À moda antiga, relembrando os tempos anteriores a seu contrato com a Miramax (quando passou a incluir um quê hollywoodiano em suas obras, desde “Match Point”, em 2005), Allen apresenta um tragicômico encontro de um velho turrão (lembrando o lendário Walter Matthau) com uma jovem perdida na vida. Daqui também irrompem transformações subjetivas impensáveis até então. “Whatever works”, como diz o título original (pra variar mal traduzido), caminhos sui generis que levam as pessoas a novas perspectivas. Assim pensava Sándor Ferenczi (o psicanalista q mais admiro), ao criar estratégias bastante heterodoxas em situações clínicas muito complexas.

Quando pensamos “Tal pessoa nunca faria análise”, ou “Isso não tem nada a ver com aquela pessoa”, mostramos apenas nosso vício de enxergar somente o que já aparece em alguém. O potencial humano sempre está para além de qualquer vislumbre, inclusive de um psicanalista, que, na melhor das hipóteses, se surpreende diariamente com seus analisandos, que transcendem até suas apostas mais positivas.

Woody Allen nunca teme esbarrar em possíveis pieguices para insistir em sua aposta na revolução humana. “Amores Inversos” também não. Ambos imperdíveis.