FESTIVAL 2017 (Dicas por estrear)

Aqui vão os destaques de todos os filmes a q assisti neste Festival do Rio 2017, começando pelos q mais me impactaram:

1) “Tschick”: O melhor de todos a q assisti no Festival, obra-prima. Lembra o excelente “Micróbio & Gasolina” de Michel Gondry, só q ainda melhor. Ótimas atuações, direção de grande qualidade artística de Fatih Akin (do excelente “Contra a Parede”), ritmo sustentado do início ao fim, mantém o espectador sorrindo de ponta-a-ponta. Imperdível!

2) “Direções”: Ótimo. Histórias paralelas de alguns taxistas, em esquetes emendados. Tensões, agressividade, violência, como um “Relatos Selvagens” sem a parte do humor negro. No pano de fundo, a falência socioeconômica da Bulgária atual.

3) “Rastros”: Muito bom! O filme passeia por alguns gêneros – policial, suspense, drama, político -, com boa fluidez e bela fotografia. Assassinatos de pessoas e animais numa pequena e congelada cidade polonesa intrigam a protagonista, uma senhora solitária idealista e bastante excêntrica. Machismo e caça ilegal são os vilões da trama, combatidos por 3 personagens supostamente fracos, numa criativa surpresa ao final da história, costurada como fábula romântica. Otimismo e ludicidade ingênua à la “Amélie Poulain”.

4) “Em Pedaços”: O diretor cult Fatih Akin (da obra-prima “Tschick” e do excelente “Contra a Parede”) traz uma história contundente de uma mulher – Diane Kruger, Cannes de melhor atriz por este filme -, q perde marido e filho num ataque à bomba. A trama é bem desenvolvida, porém não apresenta grandes novidades. A parte realmente interessante do filme é a angústia da protagonista em como encaminhar sua dor/indignação: suicídio? Homicídio? Apostar no caminho jurídico?

5) “Ensiriados”: Ótima trama sobre uma família sitiada em sua própria casa, situada num epicentro momentâneo da guerra na Síria. Saindo, tendem a ser baleados; ficando, seriam roubados, estuprados. Tensão máxima, muito bem apresentada. O único senão reside nas toscas decisões dos moradores, parcialmente compreensíveis por conta da óbvia pressão das contingências. A relação dos personagens com a protagonista – extremamente obsessiva e autoritária -, é muito bem representada.

6) “Uma Família”: Pesada trama sobre um “casal” q mora junto e aluga ilegalmente a barriga da mulher para casais q não podem engravidar. Aos poucos, o espectador é conduzido para dentro da angústia da mulher, desamparada, buscando um provedor de afeto. Um dos grandes pontos positivos do filme é a capacidade do diretor italiano de transmitir a tensão constante, os riscos, a dependência emocional, amor e ódio. Precioso nas sutilezas subjetivas, bem como na composição dos personagens.

7) “Thirst Street”: Muito bom. A personagem principal (Gina) faz alusão – talvez intencional – a “Gelsomina” (em “A Estrada da Vida”, de Fellini) e a “Macabéa” (no livro “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, também filmado). Mulheres sofridas, submissas, ingênuas e sonhadoras. A atmosfera interna e externa de uma menina em corpo de adulta, pueril ao extremo. Aos poucos, sua sanidade colapsa, com traços da personagem de Audrey Tautou em “Bem me Quer, Mal me Quer”.

Abrir o Peito à Força (“O Cidadão Ilustre”)

A obra-prima “O Cidadão Ilustre” é o melhor filme de 2017. Os diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat (dos excelentes e igualmente sátiros “Querida Vou Comprar Cigarros e Já Volto” e “O Homem ao Lado”) realizaram com maestria um filme impecável, ao conseguir articular comédia sofisticada, escracho, drama, suspense, e ainda um leve toque de surrealismo. Joia rara, já q até mesmo grandes diretores escorregaram ao tentar incluir 2 estilos diferentes de narrativa, como Woody Allen em “Match Point” e Almodóvar em “Má Educação”.

Vamos às questões de “O Cidadão Ilustre”. O protagonista, vivido pelo brilhante Oscar Martinez (de “Ninho Vazio” e “Relatos Selvagens”) – em atuação impressionante, digna de todos os prêmios do ano -, vive um escritor q acaba de ser laureado com o Nobel de Literatura. No discurso de premiação, afirma q a popularidade de um artista representa o início de seu declínio. A plateia, q incluía a rainha da Suécia, fica perplexa. A partir daí, o universo da literatura reage cancelando inúmeras homenagens e palestras, em revolta a seu tom ofensivo.

Este momento inicia um período de isolamento radical, e vazio criativo. Daniel (nome do personagem) não lê, não escreve, não namora, não trepa. Como me disse certa vez uma pessoa querida, constrói um “eremitério”, q dura 5 anos. Num certo dia, ouvia sua secretária ler convites para palestras e homenagens. Recusava-as todas, com ares de tédio pedante. Uma delas chamou sua atenção, por ser uma homenagem em sua cidade natal, Salas, na Argentina. Inicialmente rejeita, lembrando tê-la deixado há 40 anos para viver em Barcelona.

Estranhamente muda de ideia, dando início a toda a trama. Saindo do aeroporto na Argentina, é recebido por um motorista caricato, num carro caindo aos pedaços. Enguiçam numa estrada erma, passando a noite no relento. O único jeito de se aquecerem é queimar páginas de seu livro prêmio Nobel. O motorista chega a rasgar uma das páginas para limpar a bunda, na falta de papel higiênico.

Chegando enfim à cidade, um carro dos bombeiros o espera, para desfilarem a céu aberto, com uma gordinha miss da cidade. Daniel observa tudo ao seu redor com seu olhar crítico, registrando cada micro absurdo em silêncio. Enquanto o carro passa, não há multidão a aplaudir nas ruas, apenas um casal, olhando.

Em sua primeira homenagem e palestra, sala lotada e papeizinhos brilhosos jogados pro alto. Daniel segue com seu cinismo e ironia silenciosos. O prefeito ao lado, rentabilizando através.

A partir daí, o filme apresenta uma série de encontros estranhos do protagonista: um amigo de infância, a namorada da adolescência (hoje esposa do tal amigo). Daniel caminha pelas ruas, à busca de nada; nem flanância, nem qualquer busca. Um ou outro o segue, sem arriscar aproximação. Aos poucos, as solicitações passam a irritar sua assepsia emocional.

Após trepar com uma incauta, dar um “selinho” em sua ex, votar num concurso de pinturas, jantar com seu amigo, inicia-se seu novo ocaso. Daniel passa a receber ameaças ostensivas contra sua integridade física.

A cidade de Salas se explicita a seu cidadão mais ilustre: o mau pintor, seu antigo “amigo”, todos apresentam sua ferocidade tacanha, como nos clássicos “Manderlay” e “Dogville”, de Lars Von Trier. Os caninos saem do armário.

Daniel começa, enfim, a assumir sua agressividade pedante: diz q não é uma “ONG” (com precisão cirúrgica) a um pai dum deficiente pedindo uma nova cadeira de rodas de 10 mil dólares, além de outros atos de “sincerocídio”.

Finalmente, nosso protagonista consegue compreender e aquilatar o perigo de vida a q está submetido… Tenta fugir da cidade (sugestão de sua ex). No clímax do filme, Daniel é morto, e sobrevive.

Resta a discussão: foi tudo ficção ou realidade?? Daniel, já de volta à Espanha – agora aceitando ser fotografado pela imprensa -, recebe uma homenagem por seu novo livro (contando a história de sua ida a Salas). Um dos jornalistas pergunta se o tiro no peito do protagonista tinha realmente ocorrido, se o livro é literalmente autobiográfico ou não, ao q ele responde: “Interprete como quiser…” – mostrando uma cicatriz no próprio peito.

A “travessia do fantasma” (Lacan) do Cidadão Ilustre passava por um reencontro com seus horrores mais intensos, dos quais não podemos fugir. Ele dizia, no início do filme, q a única coisa q tinha feito na vida era sair de Salas. “Vou me encontrar longe do meu lugar” (Milton Nascimento). Frequentemente escuto, dentro e fora do consultório, pessoas repetindo a seguinte fala: “Meu sonho é morar fora.” Infelizmente, este lugar – fora – não existe. Não há fuga de si, não há apelação ou desvio de nossa rota fantasmática, “não há álibi para a existência” (Mikhail Bakhtin). Portanto, como dizia Freud, à negação de nossos desejos secretos responde o “retorno do recalcado”. Como nos filmes de horror, o fantasma sempre volta; ainda q a passos lentos, sempre nos alcançará.

Apesar do protagonista manter até o fim sua postura pedante, ele consegue transpassar sua “capa protetora”, a película q o impede de sentir, de tocar o mundo. Seu peito é rasgado à força, na agonística busca de se libertar da asfixia de suas próprias ideias obsessivas, de seu purismo intelectual, sua superioridade arrogante, q o impediam de acessar minimamente sua humanidade.

A volta à sua cidade natal destrói aos poucos qualquer arremedo de acordo de distância de si. Daniel, enfim, perde sua “virgindade” e ascende à própria humanidade, rasgando qualquer blindagem q o protegesse da vida. “Abrir o peito à força numa procura” é uma viagem sem cinto de segurança, sem apelações. Homenagem à música de Milton Nascimento (“Caçador de Mim”), eternamente tocante.

O Novo Cinema Soviético (“Tangerines” e “A Ilha do Milharal”)

O Oscar premia todo tipo de filme: de obras-primas como “O Poderoso Chefão” e “Onde os Fracos Não Têm Vez”, a equívocos como “Quem Quer Ser um Milionário?” e “Argo”. Dos eternos Al Pacino e Jack Nicholson, aos fracos Jeff Bridges e Cuba Gooding Jr. Das brilhantes Julianne Moore e Judi Dench, às sem adjetivos Sandra Bullock e Kim Basinger. Isso para citar apenas os anos mais recentes. Mas considero q, sem sombra de dúvidas, o legado mais respeitável e o único praticamente infalível desta premiação tendenciosa se refere aos indicados a filme estrangeiro.

Irônico q o maior espetáculo hollywoodiano erre pouco apenas no cinema não americano… Quando digo q é um braço bastante preciso de premiação, me refiro apenas ao fato de q praticamente todos os indicados são excelentes filmes, pérolas q renderam prazeres inesquecíveis. Claro q há uma lista infindável de obras-primas sem menção neste Oscar, como “A Professora de Piano” (meu filme preferido) e tantos outros (ver mais no post “Grande Lista de Filmes”, aqui neste blog). Igualmente descontemplados são atores como Isabelle Huppert (a melhor atriz do mundo, incomparável), Mathieu Amalric e Ricardo Darín.

Entre os 9 pré-indicados pra 2015 (além dos 5 finalistas, os outros também têm grande valor), além do brilhante polonês “Ida” (merecidamente vencedor), do unânime argentino “Relatos Selvagens” e do ótimo sueco “Força Maior”, houve outras 2 belas surpresas q descobri através desta fonte: “Tangerines” (representante da Estônia) e “A Ilha do Milharal” (da Geórgia). Dois países da extinta União Soviética, ainda sem tradição no cenário mundial, dois excelentes filmes de arte. Ambos trazem a guerra da Abecásia (na Geórgia) como pano de fundo.

No primeiro, estoniano, pessoas abandonam suas casas diante de um panorama de guerra. Um senhor de 60 anos (o protagonista) decide ficar em sua terra, não acompanhando sua família na emigração. Certo dia, dois soldados entram em sua casa, em tom sutilmente intimidador. Bem tratados, saem agradecidos, levando pão e água. No dia seguinte, tiroteio em frente à propriedade. Os 2 lados em guerra saem baleados, quase todos mortos. O senhor carrega um soldado baleado (um dos q ele havia recepcionado na véspera), abrigando-o num de seus quartos. Quando ia enterrando os outros, descobre mais um ainda vivo e também o acolhe. A questão é q este é do exército q lutava contra o outro…

Como o primeiro combatente se recupera mais rápido dos ferimentos, avisa ao “velho” (modo como ele se dirige ao dono da casa) q matará o outro soldado, responsável pela morte de seu companheiro no combate. O senhor escuta, calado. No dia seguinte, diante da mesma ameaça, replica: “Dentro da minha casa não permitirei.” O soldado, surpreso, acata: “Assim q ele botar a cara pra fora da casa, eu o mato.” O senhor permanece em silêncio.

A cada dia q passa, o senhor vai transmitindo valores, apenas através do seu modo de cuidar dos 2 homens. As raras palavras q fala são para conter os instantes tensos entre os antagonistas, à beira das vias de fato. Após uns dias, o senhor faz uma provocação ao primeiro combatente: “Se o outro botar o pau pra fora da casa pra mijar, vc atira no pau?” O soldado nada diz, quase como se quisesse sorrir. Mais tarde, fazem um churrasco no quintal, numa espécie de trégua tácita. Até chegar o dia em q precisariam lutar do mesmo lado. (Aí deixo para vcs assistirem, já adiantei demais…)

A beleza do diretor é orquestrar vários personagens obsessivos num pequeno cenário também obsessivo (onde cada detalhe pode de fato acabar em tragédia), em um contexto maior de tensão bélica no país, e ainda assim apresentar ao espectador a sensibilidade afetiva emanada pelo personagem do senhor e, gradativamente, percebida e recebida pelos dois soldados. Tudo isso numa linguagem extremamente contida, em todos os sentidos. Belíssimo. A eloquência “bege” do cinema nórdico (ver mais no post “’Cinema bege’, a última revolução no cinema”, aqui neste blog) conversa de perto com este “cinema soviético”.

O segundo filme, “A Ilha do Milharal”, apresenta um belo e duro cenário pós-guerra onde um velho camponês descobre uma “nova ilha” – na estação de baixa do volume de água de um rio, “nascem” micro ilhas –, com boas condições de plantio. Constrói sozinho a estrutura de uma casa de madeira, depois traz sua neta para juntos finalizarem sua nova morada, e uma plantação de milho no espaço restante da “ilha”.

A partir daí, tensões do pós-guerra e do amadurecimento da púbere menina são trabalhadas com extrema delicadeza e precisão. É bastante possível traçar um paralelo com “Primavera, Verão, Outono, Inverno e… Primavera”, obra-prima de Kim Ki-duk, onde um velho e um garoto atravessam as 4 estações como metáfora das agruras do crescimento, tudo num belíssimo cenário duma ilha entre montanhas. Mais uma vez, todos esses filmes apresentam suas questões através de personagens extremamente obsessivos, sempre com gestual minimalista.

Dois belíssimos filmes expondo intensidades emocionais em relações obsessivamente delicadas, com economia e eloquência. Quem sabe até um novo polo cinematográfico.